Narrativas visuais e a cultura remix das redes
Acompanhar as narrativas visuais no Instagram tornou-se minha obsessão há alguns anos. Participar do Instagram como leitor ou produtor de imagens é percorrer outras temporalidades, em camadas sobrepostas e não em uma linha do tempo. É se deslocar para outras geografias em territórios informacionais. Ou, parafraseando Peter Pál Pelbart: “É um emaranhado do tempo. Uma massa do tempo e não um fluxo”. Estamos diante de novas maneiras de experimentar o tempo e de novas maneiras de experimentar linguagens.
É fato: as narrativas visuais no Instagram representam uma nova linguagem visual da cultura digital contemporânea. São imagens relacionadas ao cotidiano e aos afetos.
Representam a estetização do self e de um ideário de vida. E/ou o engajamento sociopolítico e cultural relacionado aos acontecimentos mundanos, que nos comovem, nos afetam e nos perturbam diariamente. O envolvimento com a produção, mediação e distribuição de imagens como atividade cotidiana pode representar muito sobre o que somos e sobre o que acreditamos e por que lutamos.
A comunicação por meio de imagens sobrepõe outras linguagens, acrescentando camadas narrativas à literatura, às artes, à memória e ao comportamento sociocultural do homem contemporâneo. Moldados pelo uso de um dispositivo móvel, um smartphone conectado às redes Wi-fi e 4G, produzimos e trocamos imagens velozes, em baixa resolução, precárias, feitas para viajar. São imagens “ruins” ou pobres, como diria Hito Steyer. Ou melhor, são imagens ricas e desprendidas de hierarquias, instituições, códigos preestabelecidos. Estamos criando novos códigos estéticos e comunicacionais, reconhecidos entre nossos pares. E, afinal, qual é o vocabulário estético dessas imagens das redes? O que elas revelam da cultura visual digital pós-internet? Há uma miríade de possibilidades e leituras e aqui procuro trazer alguns aspectos dessa imageria nativa digital.
Para isso, me arrisco a classificar essas imagens em cinco categorias. A primeira delas pode ser lida na chave do lúdico e do narcísico. São imagens que trazem questões identitárias relacionadas ao sujeito – ou o que ele gostaria de projetar como imagem do seu self. São retratos de família e amigos, selfies (autorretratos), viagens, pratos de restaurantes, animais de estimação, capas de disco do Spotify, imagens da paisagem urbana, da apreensão estética cotidiana. São cards que tecem um jogo de memória e de afeto entre os envolvidos e os localizam numa mesma esfera social. A segunda categoria é a das imagens-mensagens, que representam o que acreditamos e pelo que lutamos, e podem ser interpretadas na chave do ativismo. Estão relacionadas à cidadania. Podem ser consideradas imagens desobedientes, levantes poéticos e manifestações estéticas produzidas em diversas linguagens visuais (desenhos, ilustrações manuais, fotos, colagens, imagens vetoriais, posts tipográficos). Esses posts representam o contexto sociocultural e político em que vivemos. Estão vinculadas aos acontecimentos diários no Brasil e no mundo. São fatos que nos afetam diretamente ou indiretamente, mas nos chamam à participação ativa, nas redes (para muitos) e nas ruas (para alguns). A terceira categoria está relacionada ao uso do aplicativo como galeria e portfólio de artistas ou instituições. Há várias narrativas autorais de trabalhos extremamente poéticos que apresentam essa vocação nessa rede social. E há narrativas focadas na divulgação de instituições, como museus e escolas. A quarta categoria faz uso desses aplicativos como mídia jornalística.
São as mídias independentes, como Mídia Ninja e The Intercept Brasil, por exemplo. Ou as mídias tradicionais que se utilizam desse novo formato narrativo para cultivar e informar seus leitores e seguidores de forma mais descontraída. A quinta categoria é a comercial, que se utiliza das quatro categorias anteriores para criar storytellings específicos, direcionados especialmente para você. Afinal, teve acesso a algoritmos e a dados sobre tudo o que você gosta, os lugares que frequenta, o que faz e consome na sua hora de lazer etc. Ou seja, essas imagens invadem o seu feed para colaborar com a branditização da sua vida, sugerindo marcas de roupas, sapatos, carros, hotéis, passagens aéreas, cursos, livros, exposições etc.
É claro que algumas categorias se sobrepõem e há imagens que não se encaixam nessa taxonomia. Há ainda a possibilidade de outros recortes, a partir de outros parâmetros de classificação. Deixemos de lado o viés comercial dos bots e algoritmos e os aspectos de controle e vigilância da nuvem para focar na potencialidade poética dessas imagens como elemento de construção narrativa.
Há uma mudança permanente e contínua dos significados das imagens que viajam nas redes sociais. Uma imagem documental – veiculada nas plataformas Instagram ou Facebook – pode ganhar novos significados quando mediada, apropriada e publicada em outro contexto narrativo. O jogo de adição, subtração e edição manipulado pelas ferramentas tecnológicas caracteriza a linguagem gráfica dessa imageria. Esses novos agenciamentos envolvem coautoria, colaboração, curadoria e apropriação de imagens de diferentes origens. Imagens documentais, fotos jornalísticas das principais mídias, imagens de personagens da cultura pop, obras de arte icônicas, cenas de seriados Netflix, quadrinhos, frases e poemas se misturam nesse remix visual e temporal. Trata-se de uma composição e edição de imagens fragmentadas, que juntas geram um fluxo informativo, visual, cinético e narrativo.
O viés cinemático dessas composições com imagens tão heterogêneas também é bastante relevante para se compreender as potencialidades e o design de narrativas com imagens móveis (mobile images). As imagens das redes são híbridas, metamórficas e assumem novas funções quando deslocadas e inseridas em montagens digitais como vemos, por exemplo, nas fotografias ativistas relacionadas aos acontecimentos no Brasil e no mundo (imagens sobre a Amazônia, os memes inspirados pela desastrosa política de Bolsonaro e a sofisticada produção de ilustrações digitais relacionadas ao momento político atual (#elenão, #designativista e #desenhospelademocracia).
Procedimentos de “copy e paste”, assim como o da repetição e o loop de imagens tão usados no cinema, preconizam o GIF, formato extremamente utilizado na web. Esses recursos caracterizam os novos formatos narrativos da era das redes. O conceito do loop se estende ao GIF e também à sequência de imagens “aglutinadas” sob a mesma hashtag no Instagram. O que visualizamos na tela do aplicativo são imagens fragmentadas em uma sequência cinética, um fluxo narrativo. Ao agenciar os experimentos que compõem as narrativas de adição e subtração e apropriação no aplicativo, o autor participa do jogo de construção da cultura regenerativa com imagens das redes. As regras são claras: apropriar, copiar, colar, deslocar, codificar, juntar, subtrair, até depurar e finalizar.
A adição de imagens de diversas fontes (de autoria muitas vezes desconhecida) em um remix de fotos apropriadas caracterizam a cultura global atual. Nas novas formas de produção de linguagem, questões como imagens fake, imagens ficcionais, colaboração e coletividade fazem parte do processo criativo. Em “Remix Theory: The Aesthetics of Sampling”, Eduardo Navas analisa como o “regenerative remix” funciona como uma ponte para o futuro da cultura na qual a efemeridade do uso de imagens, texto e som digitalmente produzidos, reproduzidos e arquivados como dados podem ser usados para propostas criativas variadas. Para o autor, as mídias sociais podem ser consideradas parte do remix regenerativo, em termos de discurso.
A reciclagem desse material disponível nas redes é a principal característica da cultura regenerativa. O upload constante e as postagens dos usuários são centrais para que as atividades artísticas aconteçam. Ou seja, o design de narrativas com imagens de banco de dados depende da produção coletiva e colaborativa das redes sociais.
As narrativas no Instagram ilustram uma mudança de paradigma sem precedentes sobre apropriação, colaboração e a transformação permanente do significado das imagens que viajam nas redes. Posts que abordam paradigmas políticos e socioculturais – abordando temas como meio ambiente, política, decolonialismo, feminismo, entre outros – se alimentam constantemente do fluxo de imagens, textos e áudios das redes sociais.
O principal desafio, à luz do design de narrativas, parece ser descobrir novas formas de compor e contar uma história considerando as dinâmicas de visualização dessas imagens, além do argumento que motivou a construção dos “stories” ou a série de posts.
Qual é o futuro das narrativas visuais? Será que a efemeridade programada vai se sobrepor às estratégias de design de comunicação? Essa é uma resposta ainda em aberto. A prática regenerativa gera novos significados, representa uma nova linguagem visual no fluxo de narrativas da era das redes. E se apresenta cada vez mais como um desafio para pesquisadores, criativos, designers e artistas. Decodificar acontecimentos socioculturais por meio de manifestações de linguagem está cada vez mais complexo. Pois o que era um fato real torna-se ficção. E a narrativa ficcional torna-se arte documental e objeto da cultura visual do século XXI.