Amanhã chegou
Já se sabe que, assim como o terraplanismo e a meritocracia, a ideia de “matéria prima barata” é um tipo de fantasia criada pelo homem. Excluímos dessa conta o valor das pessoas envolvidas, dos recursos naturais gastos para a produção e o descarte, e criamos uma matemática que não fecha. A lógica estabelecida na revolução industrial, quando Henry Ford copiou para a produção de carros o modelo em linha criado pela indústria alimentícia, rompeu vínculos e aumentou a velocidade e a voracidade do sistema de consumo. A prateleira fez com que a biografia dos produtos desaparecesse, e sua história começasse onde a mão alcança. A relação com o consumo se estreita com a satisfação imediata.
Como um lego, o capitalismo se encaixa na psique humana, nos transformando em animais de desejo. Uma presa fácil para a publicidade, pronta para vender “não coisas, e sim ideais”: oitenta por cento de tudo o que é consumido por um adulto atende a necessidades subjetivas de se aproximar ou se afastar de determinados grupos, através dos símbolos que esses produtos emprestam.
Repensar o consumo é repensar valores internos e externos, a participação como indivíduo e como cidadão. Será que o valor do telefone tem que prever a mudança climática causada pela extração de minerais? Viajar de veleiro de Londres a Nova York para diminuir o impacto da poluição gerada pelo avião é viável? Pagar uma taxa numa reserva de onças para “compensar” os fazendeiros que deixaram de matá-las para proteger o próprio gado faz sentido? Conseguimos pressionar o governo para que os impostos sobre alimentos industrializados sejam maiores e, com isso, favoreçam a venda e produção de orgânicos? Dá para privilegiar a cadeia ética de produção e abrir mão de trocar de guarda-roupa a cada estação?
Para diminuir o desespero e adicionar “esperança” a essa equação, algumas dessas propostas já estão sendo praticadas. E a força das ações cresce com a sua colaboração. Lembre-se de que não dá para julgar o indivíduo pelo bife que ele come, porque só abre mão facilmente do alimento quem já teve a oportunidade de consumi-lo todos os dias. Esteja atento para mudar o sistema, e não simplesmente repassar a conta do planeta para os mais pobres pagarem. Essa conta é de empresas e sistemas de produção, que consomem mais de oitenta por cento dos recursos naturais; do governo que não regula essas relações; e do cidadão que evita entrar nessa discussão e agir na urna e fora dela. Esse luxo a gente não pode mais pagar.
Durante dois anos, ouvi um grupo de psiquiatras, antropólogos, jornalistas, historiadores, artistas, diretores de ONGs e empresas que participam do documentário Amanhã chegou dirigido por mim e um dos motivos do convite para escrever este texto. O caminho é longo, requer consciência, paciência e reflexão de todos e de cada um. A boa notícia é que há cada vez mais gente querendo pensar sobre isso. E tem espaço para todo mundo aqui.