O passarinho no raio de sol
A estrela mais brilhante existe dentro de você.
Oxóssi permitiu que eu acordasse pra mais um dia. Tô no meu quarto, na minha cama de folhas, que me afaga avisando que era hora de se levantar. A cama é feita do mesmo material que as paredes: a carne de madeira pulsante da criatura que é a minha casa. Ela se chama Fofucha, é uma casinha bebê, de apenas cento e cinquenta anos de idade. A espécie da Fofucha acho que chega na adolescência só aos quinhentos anos, eu sempre fico meio desconcertado com isso; nossas vidas de seres humanos são efêmeras demais! Mamãe sempre fica chateada quando eu falo isso, ela diz que toda vida tem propósito aos olhos de Orixá.
Fofucha abre um dos seus olhos pra mim, e assim posso me olhar no espelho: um rapazote de seus dezenove anos até que bem vividos, pele preta do tipo realeza como bom menino de Oxóssi, cabelos crespos naturalmente azuis-claros, magricela e meio corcundinha. Mamãe diz que eu deveria parar de me curvar enquanto estou trabalhando, mas é difícil se desfazer de velhos hábitos. Eu visto meu camisu branco e as calçolas da mesma cor, pego meu fio de Oxóssi e vou pra labuta.
Eu moro no Ilê Axé Vila Cereja, um povoado bem pequeno longe de tudo, perdido no meio da Mata das Feras. A gente tem que se deslocar pra caramba pra conseguir chegar no centro do Reino Ketu. Aqui é de casinhas da mesma espécie da Fofucha, umas mais velhas e rabugentas, outras mais jovens e atrevidas. Cada casinha na verdade reflete a essência de quem mora nela.
Além das casinhas, havia nossas máquinas de produção, que eram de uma espécie diferente das casinhas, mas eram aparentadas. Tinham a mesma carne de madeira pulsante e os pelos de folhas. As máquinas produziam tudo o que a gente precisava: roupas, alimentos, utensílios, tudo. Mesmo assim, muita gente preferia fazer essas coisas na mão mesmo. Eu entendo.
Os moradores já tavam tudo trabalhando, tudo gente que nem eu, povo de Oxóssi, pele preta-realeza e cabelos crespos azuis. Todo mundo vestido de branco. As pessoas mandando ver nos afazeres diários, limpando, vendendo, ensinando, cozinhando, operando as máquinas, fazendo o Ilê funcionar, então tinha que ir fazer a minha parte.
Minha parte agora era ir pra fora do Ilê, era deixar o círculo mágico de proteção que envolve nossa vila e ir pra uma clareira não muito longe. Mesmo assim, eu poderia ser atacado por feras mágicas… Fui andando de cabeça erguida pra a clareira.
De cabeça erguida cheguei, a cabeça logo baixei. Estava diante do meu babalorixá, ele me aguardava sozinho na clareira. Eu fui o último a chegar. Ele vestia as roupas pomposas de um sacerdote de Oxóssi, com direito a pele de onça cobrindo o robe e um vistoso chapéu de penas cobrindo os cabelos grisalhos azuis. Eu gostava especialmente dos fios grossos de Babá, que ostentava ao redor do pescoço com grande orgulho.
Ajoelhei perante Babá. Babá tocou na minha cabeça. E então o Oxóssi dentro de mim despertou. Era hora de voar em direção ao sol…