Sioduhi carrega consigo a herança ancestral do povo Piratapuya do Alto Rio Negro, Amazonas, já foi reconhecido pelo Prêmio Fashion Futures 2023 e venceu o Concurso ECOAR. Sua marca, a Sioduhi Studio, é referência no futurismo indígena amazônico e utiliza o revolucionário Maniocolor®, corante têxtil à base de casca de mandioca, para inovar na indústria da moda. Destaque no Brasil Eco Fashion Week (BEFW), ele fortalece comunidades e culturas, promovendo inclusão e enaltecendo a expressão do orgulho da origem indígena e da resistência das populações amazônicas, sem deixar de abraçar a todos que vivem nesta casa comum.
Sabemos da importância da inclusão de saberes indígenas no processo de produção. Na sua opinião, como essa integração contribui para a regeneração ambiental e cultural?
Há mais de quinhentos anos, nossas tecnologias não são consideradas arte ou ciência, são vistas como algo não refinado o suficiente. Porém, nossos saberes e fazeres são de alta precisão, incluindo arte, artefatos, artesanatos e, em sua maioria, são desenvolvidos com materiais regenerativos. Hoje, com a necessidade de olharmos para sustentabilidade, bem-viver e circularidade, a indústria [da moda] passa a perceber essas cadeias vivas há milênios, como é o caso do SAT-RN (Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro), na Amazônia, considerado patrimônio imaterial conforme o Iphan. A continuidade dos saberes é um grande desafio nas comunidades indígenas devido ao avanço do consumismo, da mineração, da resistência a renunciar materiais não renováveis, e ao comportamento ultra rápido no mundo. E quanto mais incluirmos saberes e modos de estar nos mundos indígenas, mais caminharemos em direção à mitigação dos desafios do século.
O Maniocolor® é uma inovação incrível. Como surgiu a inspiração para desenvolver o corante natural?
Ele é um corante têxtil à base de casca de mandioca da Amazônia – a parte da raiz considerada resíduo é reintroduzida no ecossistema da moda em um lugar essencial: o tingimento. Minha experiência com tingimento natural veio durante a segunda coleção-cápsula, “Pamiri 23” (2021), quando aplicamos o tingimento de casca de aroeira em uma jaqueta. No entanto, posteriormente, tomei ciência de que a árvore de aroeira está sob ameaça de extinção. Diante disso, meu companheiro e eu começamos a considerar a casca rosada de mandioca descartada do mercado de Izcuchaca, em Cusco, Peru. Por meio de observação e pesquisa sobre impactos do tingimento sintético nos corpos d’água, somando ao incentivo do Programa Inova Amazônia, do SEBRAE Nacional, desenvolvemos a Tecnologia Maniocolor®, conectada aos sistemas agrícolas tradicionais da Amazônia, sendo indígenas ou não. Vale ressaltar que nem sempre o natural é sustentável: um exemplo histórico é a árvore que carrega o nome do país, o pau-brasil.
Conte mais sobre o seu processo de “desembolhar” e voltar para o Amazonas depois de viver em uma megalópole como São Paulo.
Foi necessário sair do lugar considerado centro da moda para um invisibilizado pelo Brasil. Passei por diferentes dificuldades, as maiores foram resultado das mudanças climáticas: vivenciei a cheia histórica no Rio Branco/AC, a seca histórica no Amazonas, queimadas e inundação de fumaça e fuligem em toda cidade de Manaus e municípios próximos. Perceber o quanto a Amazônia é romantizada e, ao mesmo tempo, invisibilizada pela comunicação me doeu muito enquanto indígena amazônida, e me fez ter certeza do quanto eu estava “embolhado” no Sudeste. A grande felicidade foi reencontrar familiares, amigos e movimentos culturais da região, e lutar junto a eles. O resultado desse retorno foi a coleção “Amõ Numiã: Ontem, hoje e amanhã” (2023), que denuncia a injustiça climática e recupera a transmissão oral da origem do mundo, sobre o manejo do Alto Rio Negro, no Amazonas, pelas primeiras mulheres por meio do matriarcado.
Como você visualiza uma moda descentralizada?
Com mais colaboração, mais pensamento coletivo e transparência. Sobretudo, quando falamos de moda feita fora do eixo sul e sudeste. No sentido não só de inspiração, mas principalmente investir e promover os profissionais criativos locais do norte e nordeste. Com essa descentralização, vejo a possibilidade de desenvolver estética, signos, modelagem e materiais têxteis que respeitem a identidade cultural e ambiental dessas regiões. O Amazonas, pela minha experiência, é visto como um local apenas de comercialização e não de criação. A moda sempre foi um espaço do ego e do raso; agora, precisamos pensar para além da estética, e incluir políticas públicas e ações de sustentabilidade para sensibilizar os consumidores e garantir a longevidade das marcas que propõem esse olhar descentralizado.
Recentemente, você ganhou o prêmio Fashion Futures do Instituto C&A. O que essa conquista impacta na sua trajetória?
Admito que foi inesperado, pois estava concorrendo com personalidades incríveis. Fiquei muito emocionado por receber o prêmio no momento que estava voltando para mais uma semana de moda para apresentar a nova coleção “Amõ Numiã”, concebida na Amazônia por amazônidas. Lembrei de todos os acontecimentos e das pessoas envolvidas no processo criativo. Conseguimos nos sobressair diante de todos os desafios, e que é possível criar moda fora do eixo sul-sudeste. O pensamento que me preencheu quando recebi o prêmio foi “muitas vezes, abandonamos nossas casas e nossos territórios para vivenciar nossos sonhos, sendo que não deveria ser assim”. Por fim, a partir de 2024, a ideia é ampliar os êxitos obtidos junto ao Instituto C&A e outros parceiros.
O que te inspira?
A minha vivência, a constante busca de compreender esses dois mundos, o meu mundo e o mundo não indígena. O reconhecimento das lutas travadas por nós indígenas em nível nacional e local na Amazônia, no Território Indígena do Alto Rio Negro. As viagens pelo Rio Negro, Waupés e outros afluentes, escutando histórias vivas dos nossos antepassados (diporí mahsã) da minha mãe durante o percurso. O estranhamento cultural que passei a viver depois que saí da minha comunidade indígena, desde a língua, a forma diferente de ver a vida. O orgulho das tecnologias e saberes milenares que nós enquanto povos originários possuímos. A diversidade e a resistência das amazônias e dos amazônidas, sejam povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e outros.