Será o fim da crueldade têxtil?
Se há mais de duzentos anos alguns tecidos eram considerados ameaça à saúde humana, atualmente, estilistas e marcas estão investindo em soluções que não agridam nem os animais, nem a natureza
“Má sorte.” Era assim que Gabrielle Chanel encarava o uso da cor verde no vestuário. Apesar de ser conhecida pela paleta moderna, composta por preto e branco, evitar a cartela esmeralda nas suas coleções estava um tanto distante da ideia de preferência estética ou superstição. Nascida em 1883, a estilista francesa fazia parte da geração que vivia os resquícios de lamentáveis tempos no que diz respeito aos tons esverdeados na moda. Seja no orfanato onde cresceu ou na primeira loja de chapéus em que trabalhou, a postura antiverde adotada por seus professores foi o suficiente para torná-la parte desse movimento. Isso porque, durante a evolução têxtil, que ocorreu no século XIX, a experimentação de pigmentos foi uma das grandes transformações do mercado em países como a Inglaterra e a França. Entre as novidades da época, estava o desenvolvimento do verde brilhante, que se tornou popular durante a Era Vitoriana, para representar os tons da natureza em roupas, acessórios, decorações e, principalmente, na reprodução de flores artificiais. No entanto, o que tornava as tonalidades vibrantes tão atraentes aos olhos da aristocracia era a presença de um semimetal tóxico na sua composição: o arsênio.
Mesmo com todo o conhecimento relacionado à toxicidade do componente, a indústria manteve o material na sua linha de produção em prol dos tons florais e “naturais” que embelezavam a indumentária da época. Consequentemente, tecidos nos diversos tipos de verde eram usados para confeccionar peças para mulheres, homens e crianças. Mas, a partir do contato direto com a pele, eles liberavam lentamente a substância tóxica, até seus usuários adoecerem. Tendo acumulado uma série de vítimas até a erradicação do pigmento com arsênio, as peças que ainda existem como exemplos do período pertencem aos arquivos de museus dedicados à história do vestuário, como o Victoria and Albert, em Londres – e são armazenadas adequadamente para evitar qualquer tipo de contaminação, não só pelo contato, mas pelo ar também.
Diferente da geração de Coco Chanel, vestir tecidos e pigmentos “mortais” não é mais uma preocupação na moda há quase um século. A tecnologia e as experimentações estão relacionadas à maneira como o vestuário é consumido e ao que isso representa, como agressão ao meio ambiente, mas não são encaradas como ameaças à saúde humana. Todo esse movimento, que desconecta o perigo da produção de materiais para o vestuário, teve início na busca em laboratórios por substâncias sintéticas que pudessem ser controladas do início ao fim da sua produção, evitando possíveis acidentes como os episódios do passado. Ou seja, lidar com componentes naturais nem sempre foi visto como positivo, afinal, como rastrear sua origem e seus riscos?
Ao longo das décadas do século XX, a exploração de fibras provenientes de plantas consideradas “seguras” para a confecção de roupas acabou mantendo alguns poucos nomes populares no segmento têxtil, como o algodão e o linho. Por outro lado, a necessidade de praticidade e durabilidade no guarda-roupa moderno acabou priorizando matérias-primas de origem animal e derivados do petróleo, que, até os dias de hoje, geram discussões em torno dos impactos ambientais, entre processos pré e pós-consumo. Se os sintéticos com descarte irresponsável são conhecidos por poluir a natureza, o couro ainda gera polêmicas relacionadas à criação de bovinos em regiões que afetam a flora e fauna nativa, além de, claro, levantar questões vinculadas à crueldade animal.
Na busca pela solução considerada perfeita, a indústria da moda encontrou alternativas capazes de substituir o couro por versões sintéticas que buscavam semelhança na aparência, mas desenvolvidas com base plástica – ou seja, não são biodegradáveis e impactariam de forma negativa o meio ambiente. É um grande desafio agradar gregos e troianos, principalmente no mercado de luxo, que procura equilibrar a equação baseada na qualidade e em técnicas manuais centenárias sem deixar a sustentabilidade de fora do seu discurso e das suas prateleiras. Dessa forma, algumas grifes investiram em alternativas que pudessem transformar a experiência de consumo e surpreender o consumidor com a origem de determinadas matérias-primas.
A Prada, por exemplo, apostou no batizado Re-Nylon, um tecido composto por nylon que pode ser regenerado continuamente sem perder a qualidade. A proveniência do material usado pela marca italiana é a reciclagem e a purificação de plástico coletado no oceano, redes de pesca e aterros. Atualmente, não apenas a etiqueta fundada pelo avô de Miuccia Prada utiliza o Re-Nylon, mas todas as labels do grupo oferecem bolsas, acessórios, sapatos e itens de vestuário confeccionados com o material. Já a Salvatore Ferragamo, que trabalha com tecidos procedentes de fontes nada óbvias, lançou uma série de peças feita com um material semelhante à seda, mas criado a partir da fibra da casca de laranja pela Orange Fiber. Além de fornecer material para o desenvolvimento de coleções, a empresa italiana – conhecida por elaborar processos de extração de celulose de cascas, sementes e bagaços da fruta – investiu na aplicação de nanotecnologia para trazer benefícios para o usuário da peça, como hidratar a pele.
Na ala cruelty free, as frutas seguem como fortes opções para driblar o uso do couro. Se a laranja serve como matéria-prima para tecidos, abacaxi, maçã e uva também estão na lista do que saiu da feira e foi direto para as máquinas de costura. O Pinãtex, um tipo de estrutura construído a partir de folhas do abacaxi, foi desenvolvido ainda na década de 1990 como alternativa vegana para produzir itens que, tradicionalmente, seriam feitos com pele animal. Atualmente, há marcas do mercado de luxo, entre elas a Hugo Boss, que vêm lançando itens em que esse material consta na etiqueta. Já o Frumat, que vem da maçã, é caracterizado por ter uma base mais grossa e, por isso, é uma das apostas para a produção de bolsas e calçados.
No caso da uva, uma grande novidade foi vista na passarela de Verão 2024 de Stella McCartney. A estilista britânica e a produtora francesa de champagne Veuve Clicquot lançaram uma parceria para o desenvolvimento de três versões da it-bag Frayme, um porta-garrafas e dois modelos de sandálias a partir de um material feito com um subproduto da fruta cultivada para a produção da bebida. O tempo para a elaboração? Menos de um ano e meio. A ideia é que os seis itens sejam vendidos sob encomenda, mas, no futuro, o projeto é que outras pesquisas envolvendo plantas e fungos resultem em estruturas para a confecção de artigos de luxo. Stella, assim como a Hermès, é adepta do “couro” derivado das células de micélio cultivadas em camadas de serragem – ou seja, de cogumelos.
No início do século XX, as costureiras ainda guardavam o medo de tocar nos tecidos verdes brilhantes, devido à probabilidade de serem intoxicadas por arsênio. Hoje, o cenário é, felizmente, mais animador, e dá às próximas gerações ainda menos preocupações relacionadas à vestimenta. Entretanto, o que é inerente ao consumidor ainda é a responsabilidade atrelada às escolhas, se são sustentáveis ou não – e isso será decisivo para definir o futuro da moda. Distante da “má sorte” que a própria Coco Chanel trazia como sinônimo para a cartela esverdeada, o sinal verde, agora, é favorável aos benefícios da indústria têxtil – espera-se, muito em breve, que já não agrida mais ninguém.