Corpos informacionais
A expansão das tecnologias digitais transformou profundamente nossa compreensão do corpo e as relações entre público e privado. Em um mundo mediado por bancos de dados de toda sorte, somos uma espécie de plataforma que disponibiliza informações e hábitos, conforme construímos nossas identidades públicas nos diversos serviços relacionados ao nosso consumo, lazer e trabalho. Em uma frase, somos hoje corpos informacionais. Corpos que podem não só transportar dados, mas que passam também a ser entendidos como um campo de escaneamento e digitalização de informações.
Último reduto da propriedade inalienável do homem, o corpo humano tornou-se alvo de disputas biotecnológicas que levam a escala da computação para o nível molecular do indivíduo. É possível que em breve tenhamos saudade da época em que temíamos ter o CPF, o cartão de crédito, ou dados pessoais rastreados, pirateados ou clonados, simplesmente por tê-los compartilhado de alguma forma pela internet. Dito de outra forma, sentiremos saudade do tempo em que invasão de privacidade significava manipular informações relacionadas à nossa pessoa jurídica ou física. As informações sobre as quais falamos aqui vêm do nosso corpo, e são codi cadas computacionalmente para ser combinadas a outras que permitem mais precisão de controle e vigilância.
A leitura da íris, por exemplo, mapeia anéis e pontos no globo ocular. A representação matemática desta leitura é arquivada em um banco de dados e permite a identificação do indivíduo em segundos, além de cruzar as informações com outras. Como se sabe, os olhos não mentem. Contudo, o que nem sempre se sabe é que esse tipo de análise biométrica é frequentemente associada a uma série de aplicações comerciais e procedimentos que vão muito além da segurança e da saúde pública. Sistemas ópticos de escaneamento podem revelar, instantaneamente, o consumo de drogas, álcool, gravidez e doenças como diabetes em um clique, dispensando procedimentos considerados invasivos. Mas podem estar, e cada vez mais estão, associados a aplicações comerciais, como monitoramento de funcionários no trabalho e transações bancárias.
Patenteados e monopolizados por empresas, os algoritmos relacionados a esse tipo de tecnologia convertem-se em um imbróglio entre poder público, poder corporativo e soberania do indivíduo sobre seu corpo. A obra da artista norte-americana Barbara Kruger, Teu corpo é um campo de batalha (1989), ganha uma súbita atualidade enquanto somos esquartejados em inumeráveis algoritmos proprietários, emergindo como o grande lão em disputa de um novo território biopolítico.
A inserção da computação no corpo não só permite identificar os corpos, como também possibilita verificar a identidade e traçar um per l histórico das ações do indivíduo. Em vez de termos um arquivo físico com medidas cranianas e retratos falados em papel, agora lidamos com bases de dados digitais que comparam em tempo real informações colhidas por web câmeras instaladas no espaço urbano com as informações fisiológicas também armazenadas em nuvens.
Além da biometria propriamente dita, outros métodos de monitoramento do corpo, como microchips, RFIDs (Identi cação por Rádio Frequência) implantáveis, nanorrobôs e proteínas biossintéticas, que coletam dados sobre a fisiologia molecular, são campos de investigação cada vez mais promissores.
Ainda que, em grande parte em estágio experimental, ou restritos ao uso militar e em centros avançados de pesquisa medicinal, vários dispositivos biotecnológicos estão disponíveis para o público e conectados em rede. Prova disso é a popularidade de aplicativos para iPhone e afins relacionados à saúde.
Conectados a plataformas corporativas, esses aplicativos fornecem informações mais precisas não só sobre a performance do corpo, mas também sobre a localização daquele corpo no espaço físico. Você pode optar por não compartilhar a sua localização quando acessa um website ou pode desligar o celular se não quiser ser incomodado, mas você não pode desligar o seu corpo.
Isso tende a se acirrar conforme se popularizam os métodos de investigação genética e sua distribuição pela internet. No limite, foi isso o que o Projeto Genoma fez: converteu a noção do corpo, antes entendido como um arranjo de carne, ossos e sangue, em um mapa de informações sequenciadas em computador.
Stranger Visions (2013), da artista norte-americana Heather Dewey-Hagborg, traz esse problema no centro de suas preocupações estéticas e políticas. Utilizando kits de investigação de DNA disponíveis para compra na internet por cerca de 200 dólares, ela coleta material genético a partir de “vestígios” deixados por qualquer um nas ruas. Esses vestígios vão de bitucas de cigarro a chicletes mascados, passando por os de cabelos e guardanapos usados. Depois de sequenciar o material em laboratório, importa o código genético para um programa de reconhecimento facial utilizado em investigações policiais. Modi cado pela equipe da artista na NYU (New York University), esse programa foi adaptado para impressoras de fabricação digital 3D. O resultado são impressionantes máscaras de rostos – retratos escultóricos,como denomina Dewey-Hagborg –, cujos códigos genéticos são disponibilizados em uma plataforma de software livre (Github).
Em Probably Chelsea, um de seus trabalhos mais recentes, Dewey-Hagborg questiona a manipulação ideológica da genética. A instalação gira em torno da identidade e história de Chelsea Manning, transexual, ativista, que foi analista de inteligência do Exército dos EUA. Nascida sob o sexo masculino com o nome Bradley Edward Manning, foi responsável pelo vazamento dos documentos do escândalo Cablegate, que o Wikileaks publicou em 2010. Hoje, seu nome é associado à defesa dos direitos da população trans e das políticas de transparência governamentais.
A parceria entre Dewey-Hagborg e Manning começou em 2013. Na época em que estava na prisão, não circularam imagens de Chelsea, a não ser uma velha e desbotada foto de seu rosto. Dewey-Hagborg resolveu recuperar esse corpo ausente e fazer o seu retrato, a partir do DNA da própria Chelsea, enviado à artista da prisão. O resultado desse processo são 30 retratos impressos em 3D. Para a sua execução, foi realizado um processo de manipulação algorítmica do código genético de Chelsea Manning. A consequência disso é muito perturbadora, pois a partir do conjunto de dados extraídos do DNA da Chelsea Manning, aparece uma variedade surpreendente, em termos de cor, gênero e tipo físico de rostos.
Apresentadas em conjunto, modeladas em impressão digital 3D, essas máscaras enigmáticas levantam questões sobre a política de produção de imagens em uma nova era de vigilância. Nela se combinam a governança biométrica e a possibilidade de design dos corpos. As “estranhas visões” provocadas pela artista não só descortinam as novas dimensões das biopolíticas do século 21 mas fazem, também, pensar que estamos testemunhando a reconceituação do que se entendia por natureza. Em sintonia com as conquistas científicas, os limites entre natureza e cultura perdem definição e indicam também novas dimensões estéticas e cognitivas.
Não se fala aqui de uma pós-natureza, mas de uma próxima natureza. Até mesmo porque vivemos hoje em meio a uma constelação de produtos, como tomates transgênicos e gatos hipoalergênicos, que são “autenticamente arti ciais”, como diz o designer holandês Koert van Mensvoort, editor do blog Next Nature.
Neste mundo, configura-se todo um novo imaginário, em que as noções de gênero, reinos – vegetal, animal e mineral –, idade e nacionalidade se diluem, abrindo-se em direção a outros modos de ser e de existir. Trata-se de uma experiência emergente da subjetividade e da sensibilidade contemporâneas. Nela vestem-se papéis e constroem-se identidades momentâneas, subvertendo os limites entre o tubo de ensaio e a programação algorítmica.
Definitivamente, para além de todas as conquistas que ainda estão por vir na área da saúde e em outros campos, a era da vigilância biotecnológica coloca em pauta a gestação de novas políticas de controle e mobilidade. Elas embaralham, sob parâmetros inéditos, os limites entre público e privado, corporativo e governamental, máquinas e homens.