Flâneuse: Erupções femininas no espaço e tempo
A realidade que conhecemos foi desenvolvida pelos homens e por muito tempo as mulheres não eram entendidas como cidadãs, excluídas da esfera pública. No Brasil, somente há 53 anos elas conquistaram os mesmos direitos de voto que os homens, com o Código Eleitoral de 1965.
Ruth Bader Ginsburg, ministra da Suprema Corte dos Estados Unidos (país de destaque na supremacia mundial mas que nunca teve uma mulher como presidente), nos conta que nos anos 50, quando ingressou na faculdade, “o reitor pediu que cada uma de nós dissesse o que estava fazendo na escola de Direito, ocupando o lugar que poderia ser de um homem”.
Sei que estamos caminhando para outro lugar, mas é preciso reconhecer que até hoje as referências de modelo de sucesso são majoritariamente masculinas. Essa supremacia se revela no cotidiano, nos nomes de ruas, de escritores, artistas, cientistas e empresários que conhecemos, e também conceitualmente, por meio das teorias mais utilizadas para a compreensão do mundo e na organização do conhecimento. Teoria da evolução, Darwin, gravidade, Galileu, Relatividade, Einstein, inconsciente, Freud, todas foram elaboradas e esclarecidas sob a ótica masculina. Evidências que provam que este ponto de vista foi por muito tempo o único influenciador e criador de narrativas morais e estéticas.
Neste sistema de dominação, foi a condição de subtração e alienação das mulheres que garantiu o apoio ao projeto de sucesso dos homens. Em sua análise, a autora Virginia Woolf reconhece o não-lugar das mulheres como requisito fundamental na formação desta estrutura assimétrica. “Por todos esses séculos, elas serviram como um espelho que tivesse o poder mágico e delicioso de re etir a gura do homem com duas vezes o tamanho do original.” Um reflexo que as esconde mais do que revela. Um arranjo predominantemente masculino onde os homens foram moldando seu lugar de privilégio em relação à ocupação do espaço.
A artista carioca Anitta Boa Vida constrói a luta contra o patriarcado a partir da materialização estética do sujeito e objeto. Corpo miúdo que, ao flanar pela cidade, demarca o olhar feminino através da produção de imagens que transgridem a norma dominante do olhar masculino sobre as mulheres. Na série Boys from Athens, a artista apropria-se do seu olhar e com um apetite implacável materializa o ponto de vista de uma mulher por meio da produção de novos fatos estéticos. Pavimentando uma superfície menos irregular na divisão social do gênero.
A cidade é um recipiente metafísico
A alegoria do flâneur, criada no século XIX pelo autor francês Charles Baudelaire, foi pioneira em reconhecer o impacto do espaço urbano no desenvolvimento da subjetividade do indivíduo. Ao explorar a cidade através de um exercício de ocupação e observação, o conceito reconhece sua vocação para a construção da consciência. Para o poeta, a figura do flâneur está interessada na subjetividade que se dá a partir da vivência da cidade “um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugida”.
Porém, ao descrever o flâneur como “alguém abandonado no meio da multidão”, ele exclui as mulheres desta interpretação e expõe a subordinação social do gênero feminino. Enquanto a mulher do século XIX era desencorajada a sair sozinha – e quando no espaço público deveria estar acompanhada – a do século XXI precisa ser vigilante de sua própria existência.
O flâneur assume que é possível separar-se de seu corpo para fruir em um exercício imaginativo e criativo. Já nós mulheres, até hoje não conquistamos a liberdade para desencarnar de nossos corpos quando presentes no espaço público.
Fora do juízo esperado, Anitta Boa Vida constrói o olhar voyerista feminino e entende que, na cidade ou na praia, os homens, assim como as mulheres, também podem ser olhados e admirados. E, a partir da apropriação do espaço, constrói uma realidade marcada pela existência do olhar feminino.
Crítica à dessemelhança de como os gêneros sentem a cidade, Boa Vida viabiliza o fluxo natural da vivência do espaço público e ao fazê-lo, sobrepuja os limites estabelecidos para a elaboração do repertório das mulheres, evidenciando a contenção de nossa voz interior, também disciplinada a curvar-se à dominação do gênero masculino.
Isso se revela em uma sensação de insegurança exagerada, comum entre tantas mulheres que têm dificuldade de se pronunciar no trabalho ou com a família. Outro exemplo é a facilidade em pedir desculpas quando não usam a palavra mais adequada e até quando não houve um erro, enquanto homens di cilmente interrompem sua explanação desculpando-se. Ou ainda, sentir-se insegura por ter uma opinião forte ou para contrariar uma autoridade e mais facilmente performar sorrisos. A moldura condescendente da personalidade feminina não vingou de forma natural, pelo contrário, ela é o testemunho da estrutura separatista do espaço.
Jill Soloway, escritora e diretora da série Transparent, disse que a parte mais difícil de dirigir não era o título ou mesmo o fato de ser diretora. Para ela, o mais difícil envolvia entender que estar no comando significa que todo mundo está sempre perguntando como você quer que as coisas sejam feitas. Porém, neste espaço moldado pela dominância do pensamento masculino, não estamos acostumadas a ser questionadas sobre nossas vontades genuínas. Então, pode ser até que seja verdade que na maioria das vezes a gente não sabe o que quer. E não é porque somos indecisas, mas porque por muito tempo não éramos autorizadas a ter uma opinião, mais acostumadas em ser platéia do que gura principal.
A expressão “mansplaining”, criada pela escritora feminista Rebecca Solnit e que já foi traduzida em mais de 30 idiomas, identificou a naturalidade com a qual os homens tendem a nos explicar e facilitar nosso entendimento, mesmo sobre coisas que eles não saibam. O termo reconhece a nossa posição de espectadoras e não de centro das atenções. Condição que ficou evidente quando a candidata à vice presidência Manuela d’Ávila esteve no programa Roda Viva, da TV Cultura e foi interrompida 62 vezes pelos entrevistadores (enquanto outros candidatos de 8 a 12 vezes), sendo impedida de apropriar-se de seu lugar de ”centro das atenções“.
Flâneuse: um conceito urgente e contemporâneo
Reafirmando a relação assimétrica dos gêneros na ocupação do espaço público e também crítica à ausência de interpretação feminina na alegoria do flâneur, Janet Wolff publicou, em 1985, o ensaio The Invisible Flâneuse. Ao flexionar o conceito do masculino para o feminino, ela reconhece a existência da mulher no espaço público e aproxima os gêneros, tentando abolir a relação desigual.
A gênese da subordinação social das mulheres não é nada banal. E enquanto a divisão do espaço social e simbólico for desigual, o trabalho das mulheres será persistir e através de pequenas erupções no espaço e tempo desmantelar a hierarquia dos gêneros. Com seu trabalho, Anitta Boa Vida promove a desintegração da dominância masculina. Através de sua presença-ação, a artista conquista seu olhar e desbrava a invisibilidade feminina. E ao clamar “Ouçam as mulheres”, ela afirma a necessidade de ir mais longe na ocupação de estruturas e que a revolta de uma história opressora deve ser combatida através da criação de espaços dentro e fora de si mesma.