Um novo jornalismo
Mudanças são sempre difíceis de acontecer, mas a necessidade do agora é urgente. O mercado editorial está pequeno, capenga e desatualizado. O jeito de fazer de antes deu certo por um tempo e, apegados à ideia de um possível retorno, não houve evolução do jornalismo – não só o brasileiro, porque os Estados Unidos e alguns países da Europa também enfrentam uma crise forte nas empresas de comunicação. E, assim como diante de questões ambientais, escolheu-se o caminho mais fácil do não-ver-para-não-crer. Sair do marasmo, portanto, só será possível com consciência e informação.
Pode parecer uma longa distância entre a sustentabilidade e o jornalismo, mas, na verdade, está tudo conectado. Explico: há anos, as editoras vêm sofrendo as consequências da descentralização das notícias e das opiniões. O que antes ficava a cargo de um longevo colunista em um jornal diário ou de uma crítica de moda respeitada, hoje pertence a muitas pessoas (até as “quaisquer” umas, assunto para depois). O erro foi achar que a saída era fazer igual. Mimetizar os passos e as estratégias das influenciadoras para garantir audiência e saúde financeira. Doce engano que demorou para ser reconhecido, e já era tarde demais para rebobinar a fita.
A comunicação está estafada. São inúmeros os conteúdos produzidos por dia para diferentes aplicativos. Nesse aqui é foto, naquele ali é áudio, no outro é vídeo – todos fadados a medir notoriedade por um número irreal de visualizações ou alcance. Um conteúdo que se perde em prol da imagem, muitas vezes sem sequer uma legenda. O formato, por sua vez, é o mesmo. Quantos não são os vídeos de pessoas usando tons de bege fazendo um fit check no meio da rua? Quantos não são os vídeos de tutoriais de maquiagem com qualquer-coisa-core para você pular de personalidade a cada dois minutos, já que a anterior foi descartada na velocidade que surge uma nova? Quantos não são os vídeos copiando e esvaziando de sentido a estética tão bem construída de um diretor como Wes Anderson?
Do outro lado da conversa, quem recebe essa informação também se acomodou – quando há legenda, não a leem, por exemplo (isso para dizer o mínimo). Jacques Rancière, filósofo francês com estudos voltados para a estética, tem um livro que se chama O Espectador Emancipado, dedicado a mostrar o quanto um observador do cinema, das artes plásticas, do balé ou qualquer que seja o formato tem (ou deveria ter) autonomia diante daquela obra. “Não há teatro sem espectador”, escreve. De fato, não há. Mas de que adianta ter alguém sentado na cadeira que não reage ao que vê — e isso não significa que você precisa escrever ou falar sobre tudo o que consome nas redes sociais, não é essa a questão (está longe de ser). “É preciso um teatro sem espectadores, não um diante de assentos vazios […]. É preciso um teatro sem espectadores, em que os assistentes aprendam em vez de ser reduzidos por imagens, no qual eles se tornem participantes ativos em vez de serem voyeurs passivos.” Contudo, como deixar a passividade de lado se não há interesse pelo conteúdo aprofundado? Como aprofundar conteúdos se não há leitor interessado?
Acrescento à equação a urgência de um jornalismo ético tanto com o ofício em si, quanto com os funcionários. Pela redução de investimentos na imprensa tradicional, as equipes dos veículos são consequentemente reduzidas. Antes, um editor tinha pelo menos um, dois repórteres. Hoje, editor com repórter é luxo. Contratam-se freelas, retiram-se os direitos trabalhistas, os que restaram são sobrecarregados, adoecem os que colocam a mão na massa. Não à toa, é super comum encontrar ex-jornalistas que viraram chefs de cozinha, escritores de ficção, decoradores, arquitetos, artistas, médicos… Renunciaram à carreira a ponto de não quererem nem saber mais dela. Por onde anda? Passa longe.
Existe um meio do caminho, existe a possibilidade de coexistir: a imprensa e os produtores de conteúdo. O mercado precisa entender na sua totalidade, da assessoria ao investidor, que são intenções e ações diferentes. Um influenciador não deveria excluir um jornalista. Eles deveriam poder habitar o mesmo espaço, sem concorrência, porque não há. Ela é ilusória – mas enganou a muitos, sim. E minou também o brilho e a vontade dos melhores repórteres e editores de fazerem aquilo que amam.
Sem a imprensa responsável, longe de modismos de redes sociais ou clickbaits de audiência vazia, não teremos um futuro condizente com as necessidades da natureza e da humanidade. De nada adianta fingir que possui uma marca de roupas sustentáveis só pelo fato de usar algodão orgânico, da mesma forma que também não adianta escrever pautas sobre feminismo e celebrar os milhões de pageviews no fim do mês à custa de mulheres de biquíni na praia. Precisamos de profissionais da imprensa valorizados pelas respectivas expertises, pelo trabalho hercúleo que é escrever reportagens, acompanhar eventos, fazer viagens, pensar nas entrevistas enquanto edita o vídeo da anterior pelo próprio celular. Também precisamos enxergar valor (material e simbólico) nos conteúdos bem-feitos e apurados, independentemente da editoria – se de moda, beleza, política, arte, cinema, saúde: jornalismo é jornalismo.
Na década de 1970, o new journalism se popularizou nos Estados Unidos, com expoentes como Joan Didion e Truman Capote escrevendo textos belíssimos sobre as mais diversas experiências diante do contexto cultural efervescente e complexo da época. Mas não precisamos de um novo jeito de escrever, e, sim, de um novo jeito de pensar e operacionalizar a profissão. Iniciativas como esta que você lê aqui são raras, mas indispensáveis para repensarmos o que há de certo e errado no modo de propagar informação de qualidade. Uma que possui apoio estatal e aporte privado, sem qualquer interferência criativa ou de conteúdo.
O ideal da liberdade de imprensa se perdeu no meio desses tortuosos últimos anos – ou décadas. Que possamos sonhar mais uma vez com a possibilidade de um jornalismo salubre para a sociedade e, principalmente, para os próprios jornalistas. Sem eles (nós), não somos nada.