Sonhar para se reinventar
Um futuro. De inovações, tecnologias limpas, projetos sustentáveis. A moda ecoa o discurso do mercado e promete novos tempos. Imaginar futuros é um dos modos de operação do sistema de tendências, algo que está em sua própria estrutura. E, em termos de macrotendências, se tudo funcionasse conforme as projeções, já estaríamos vivendo num cenário tipo Jetsons.
Aliás, pouca gente entendeu que esse desenho animado veiculado originalmente em 1962 e 1963 era, na verdade, uma crítica à futurologia sem sonho: cheios de gadgets, wearables, montados em suas espaçonaves individuais, os Jetsons se debatiam com os mesmos chefes capitalistas, os mesmos padrões de beleza e necessidade de status. Vale lembrar dos empregados domésticos, substituídos por robôs que, vejam só, também eram capazes de sentir.
Temos questões urgentes, é fato, e se hoje existe alguma certeza é a de que estamos nos aproximando perigosamente de outra espécie de futuro prevista em nossas produções de entretenimento de massa. A saber, a que segue a linha Mad Max, representada atualmente por episódios de Black Mirror e outras séries dedicadas às distopias. Porém, pior do que isso: as distopias parecem cada vez mais próximas da realidade.
Podemos dizer que a realidade está mesmo difícil de engolir, com a ascensão da extrema direita em vários países, novos muros, retrocesso de liberdades e uma escalada de empobrecimento cultural, com direito a um impressionante desprezo pela ciência. Isso tudo é verdade, mas o que talvez muitos de nós deixemos passar é algo ainda mais grave e nocivo. Esse estado de coisas está atacando e mirando a própria capacidade humana de simbolização.
Há algo da ordem do excesso que não pode ser alcançado pelo que é documental ou próximo demais da realidade. Criamos monstros e catástrofes estelares para falar de nossos problemas mais íntimos, de nossas relações familiares. Criamos o humor, o nonsense, o palhaço. Não podemos dar conta de nós mesmos, da construção de nossa subjetividade, sem tudo isso e tantos outros recursos. Não podemos ser achatados e simplificados.
Por outro lado, o que nos oferecem como substituto é a criação de realidades mentirosas, o mundo da pós-verdade, das fake news, dos coaches que remodelam pessoas como se fossem fachadas de prédios, dos que não abrem janelas de simbolização, mas prendem em jaulas de silêncio, de sorriso ressentido, de um complexo autoengano.
E como fica a moda nessa história?
Na última década, executivos e influenciadores construíram o que, em termos de moda, é um terreno capaz de sustentar essa tentativa de aniquilar sonhos. As pautas passaram a ser estritamente ligadas a uma certa realidade, ou melhor, a certas realidades.
Por um lado, temos as pautas sociais. Essas, de fato, precisavam e precisam ser abordadas. Porém, com raras exceções, essas pautas foram abordadas de forma rasa, ou de forma oportunista, ou ainda de uma forma tão documental quanto estéril, com uma pretensão de objetividade. São maneiras de girar em falso, de agir para que nada mude. Estamos falando sobretudo da moda mainstream, do que está nos desfiles, nas maiores revistas, no Instagram, na aba dos grupos bilionários etc.
É claro que alguns criadores foram capazes de sair dessa curva, e são essas as iniciativas que merecem atenção. Sua qualidade não está exatamente na militância, mas no trabalho de transformar discursos e demandas práticas em tecido de futuro, em utopias, em sonhos. Em imagens e roteiros que condensem e desloquem desejos, que ao menos dialoguem de alguma maneira com esse processo.
Estamos falando de construir a possibilidade do próprio sonhar.
Não há futuro sem isso, sequer há presente, mesmo as memórias ameaçam desaparecer, apagando lentamente.
Por outro lado, temos as reafirmações violentas de um passado que a imposição quer repetir, em versão sem dúvida piorada. A imagem de moda tradicional continua sendo veiculada, cada vez mais decadente. E embora essa decadência seja explícita, ela passa a ser sustentada pelas narrativas de inovação. Tanto de inovação tecnológica quanto de inovações da tecnologia humana, de relações sociais. Juntas, estabelecem uma relação cujo produto é nada menos que nocivo.
As influenciadoras têm um papel nisso. Surgiram, assim como as fotos de street style, como uma promessa de aproximação entre a moda e a vida das pessoas, algo que seria menos opressor em termos de padrão. Em pouco tempo, porém, criou-se um olimpo de “pessoas reais”, cujas vidas expostas via Instagram são uma sucessão de looks, paisagens e mesas de restaurantes caros. Algo que nos faz ter saudade das possibilidades do bom e velho chroma key, de quando as heroínas apareciam tendo ao fundo dinossauros ou paisagens de Júpiter.
O novo sonho é o sempre velho sonho de ser a rica padrão e de viver uma realidade de exclusão. De ter acesso ao super exclusivo mesmo que ele seja um luxo desprovido de imaginação, na maior parte das vezes pautado pelo preço, pela falsa simplicidade (tipo mini hotéis caríssimos e “rústicos” no meio do deserto) ou por esse ou aquele movimento da indústria, pelo que há muito chamamos de hype.
Entre os estilistas, pressionados para criarem roupas “reais”, de “mercado”, poucos têm escapado. E muitos dos que escapam não encontram vitrine na democracia pra marciano ver, derrubados pela falta de dinheiro ou pelos algoritmos e suas barreiras invisíveis.
É evidente que a moda é um mercado, que precisa girar capital, etc. Ninguém mais parece negar isso. Mas para uma indústria que já teve Alexander McQueen, que ainda tem Rei Kawakubo, que conta com os momentos mais inspirados de Alessandro Michele, a moda mainstream (que com todas as suas contradições e paradoxos já foi capaz de produzir coisas que, além de belíssimas, suscitavam viagens simbólicas) parece estar encolhida na cama, com a luz apagada. Ou talvez trabalhando à base de bolas e analgésicos, sentada à frente de um computador, esperando para postar #sextou.
Drones, impressoras 3D, malhas tecnológicas, zero waste, veganismo, transparência, desapego. Dos recursos materiais aos mais abstratos, há muita coisa em movimento. Mas a importância de tudo isso não será compreendida somente por meio da informação, do textão e da estratégia de marketing.
Sim, em tempos de fake news e de notícias submetidas ao crivo de anunciantes e parceiros comerciais, a boa informação é revolucionária e tem, sempre terá, papel fundamental. Inclusive nas mídias de moda, evidentemente. É aquilo que sabemos. E mesmo esse processo está tão problemático que ganhamos novos intermediários, os chamados fiscais e consultores de bom senso, aqueles que tamponam ou lapidam preconceitos antes que determinado produto seja apresentado ao público. Vem à mente um dos hits da cantora Rihanna, “Don’t tell me you’re sorry ‘cause you’re not. Baby when I know you’re only sorry you got caught”.
Mas quando o que entra em cena é o que não sabemos, o que queremos sabendo ou não de nossas faltas e desejos, precisamos de outros elementos. Precisamos sonhar.
Dormimos cada vez pior. Sonhamos acordados com coisas banais. Devido à má qualidade do sono e da pressa dos despertares, dos despertadores, damos pouca atenção aos sonhos da noite. Não que devêssemos estar preocupados em interpretá-los, mas sim em cultivá-los como algo nosso, como terra de um tipo de liberdade específica, onde travamos batalhas e encontramos chaves, esqueletos, tesouros e mistérios.
Se os designers do futuro devem abraçar causas, há ao menos duas prioridades que parecem se destacar. Uma é a causa das relações de trabalho, da igualdade de direitos civis, do fim da concentração insana de renda e poder. Simplesmente porque, sem isso, nada será realmente sustentável a longo e mesmo médio prazo. Exatamente porque sem isso todo “verde” será sugado para dentro da lógica do condomínio, ou seja, da criação de ilhas excludentes de privilégios e bem-estar.
A segunda é sem dúvida a causa dos sonhos. É diferente do escapismo de hashtag, do consumo de ilusões clichê, de fantasias pré-fabricadas e descartáveis. Sonhar não é escapar do mundo ou da realidade, mas construí-los a partir de um outro lugar, de uma outra perspectiva. Sonhar não é a solução para todos os nossos problemas, mas certamente é fundamental para a possibilidade de nos reinventarmos.
Não sonhar nos custa tudo.