Essay: A museum of great novelties: the future is the past in our cities

BY / POR JOICE BERTH

ILLUSTRATION / ILUSTRAÇÃO ESTELA CARREGALO

As was said in that Barão Vermelho song: the poet is not dead. Cazuza remains alive in our hearts and his rebellious poetry, filled with indigestible truths, should serve as a guide, even years after his departure. Things become obsolete, but not in a country that refuses to face its history with dignity and wisdom.

No, we are not to blame the mistakes and misgivings of our ancestors. Especially because guilt — which was introduced to us by concepts present in the morality of Christianity — is neither useful nor valid when it comes to social transformation. We must replace it with responsibility as the raw material for our future actions in. In all areas, including two among the most structuring, and to an equal extent neglected, by people in general: architecture and urbanism.

Roughly speaking, architecture builds spaces and buildings, and urbanism builds cities, neighborhoods and collective spaces. Both activities are intrinsic and inseparable, which is why their academic training is joint — which almost everyone knows. But almost no one knows that along with this combo (and because of the technical demands that collide and mix with those of humanity) exists a multidisciplinary approach that functions as the “soul” of this profession. This means that those who build — cities or buildings for any use — build for someone.

As a result, architecture and urbanism social are professions in essence. Since they are social, they can only be well done by professionals participating in dialogue and constantly observing society and its dynamics. We can even trace the great difficulty that puts this professional enterprise in a state of attention, dialogue with the whole, or multidisciplinarity.

Our society, throughout its existence, but especially now, needs professionals who are committed to the mistakes and misgivings of the past, even if they are not directly responsible for them. Otherwise, as the poet said, the museum of great novelties that makes the future repeat the past will continue to be a speed bump on our paths to social transformation. The city and all there is within it, as well as the way it treats itself and us, is guided, forged and consolidated based on historical errors that were kept up without question.

In “Se a Cidade Fosse Nossa“, my book about the right to the city, I raise two central questions: what if the city belonged to women? What if the city belonged to black people? These questions branch into many others that raise issues such as: what if the city belonged to the poor, the queer community, the elderly, children, immigrants, the people with disabilities, mothers etc.

Our society was built on oppressive foundations that left those who are, in some way, located in the space of subalternity, outside of general considerations. These groups occupy the cities and use the buildings designed by big stars, accommodating themselves in the gaps and spaces of their invisibility.

 If the city were indigenous, informing that all land is traditional and, therefore, regardless of whether urban or rural, belongs to indigenous peoples, we would know intuitively that “a native with an iPhone” is just fine. And, above all, we would know that “native” is an identifier marked by colonization.

If the city were ours, our buildings would tell not only our history of European colonization, but also our Afro-Indigenous roots and the creativity of the architects who work to decolonize cities and buildings.

If the city were ours, it would be a space of coming-together and recognition that would feed our patriotic pride, not in an exclusionary and supremacist way as a certain wing of biased political ideology desires, but as people who appreciate other histories from around the world because they learned to love their own.

Unfortunately, there is no urban policy that will have medium and long-term effects without taking into account that our social issues are deep in every possible and imaginable way. 

Decolonizing is necessary 

“Of course, another world cannot be possible until the continent and its people are fully decolonized and the traps of the postcolonial neo-colonized world are broken. This will require an epistemic rebellion that allows formerly colonized peoples to gain self-confidence, allowing them to reimagine another world free from Western tutelage and the African dictators who enjoy Western protection. A new imagination is needed that simultaneously liberates the colonizer and the colonized,” says Sabelo Ndlovu-Gatsheni in “Se a Cidade Fosse Nossa“.

Professor Sabelo Ndlovu-Gatsheni’s thinking is in line with the epistemology of the subaltern subject established by Paulo Freire, and the subaltern urbanism proposed by Indian urban planner Ananya Roy. Over these theoretical bases, I have reflected on our daily lives and how we can think of a new pattern of relationships between our cities and our architectures, more fair, egalitarian and comprehensive given the countless differences that constitute us as Brazilian people. But beyound that: I reinforce the importance of understanding that, in addition to technical and formal issues, architecture and urbanism directly influence our subjectivity, playing a pedagogical role through their languages and symbolisms, which impact our psyche.

Cities make up the personality of a people. They express what is in their heart, using architecture and the urban fabric as language. Let us remember the psychoanalyst Jacques Lacan, who stated that the unconscious is structured like a language, and think about the countless structures that are found, feed on each other and silently strengthen each other, despite our desires to combat inequalities, we can assume that is no longer possible to ignore that social complexities define our physical spaces and our architecture.

In fact, this can take us towards a utopia representing the future, with conscious and efficient interventions in the present.


Museu de grandes novidades: o futuro é passado nas nossas cidades

Conforme foi decretado naquela canção do Barão Vermelho: o poeta não morreu. Cazuza continua vivo em nossos corações e sua poesia rebelde, carregada de verdades indigestas, deveria servir de norte, mesmo depois de anos de sua partida. As coisas se tornam obsoletas, mas não em um país que recusa olhar com dignidade e maturidade para sua história.

Não, não somos culpados dos erros e equívocos dos nossos antepassados. Até porque a culpa — que nos foi apresentada por conceitos pautados pela atuação moral do cristianismo — não é útil e tampouco válida quando o assunto é transformação social. Devemos substituí-la pela responsabilidade como matéria-prima de nossas ações futuras. Em todas as áreas, inclusive em duas das mais estruturantes, e em igual medida negligenciadas pela massa popular: a arquitetura e o urbanismo.

Grosso modo, podemos dizer que arquitetura constrói espaços e edificações, e urbanismo constrói cidades, bairros e espaços físicos coletivos. Ambos os fazeres são intrínsecos e indissociáveis, por isso sua formação acadêmica é conjunta — o que quase todo mundo sabe. Mas quase ninguém sabe que junto desse combo (e até por conta das exigências técnicas que esbarram e se misturam com as da humanidade) há uma multidisciplinaridade que funciona como “alma” do fazer profissional. Isso significa que quem constrói — cidades ou edifícios de qualquer uso —, constrói para alguém.

Isso faz da arquitetura e do urbanismo profissões sociais em sua essência. Sendo sociais, não há a menor possibilidade de serem bem-feitas se não forem parte de diálogo e observação constante da sociedade e de suas dinâmicas. Até dá para traçar a grande dificuldade que coloca o fazer profissional em estado de atenção, o diálogo com o todo ou a multidisciplinaridade.

A nossa sociedade, em todo seu tempo de existência, mas, sumariamente, agora, necessita de uma visão profissional que se comprometa com os erros e equívocos do passado, ainda que não sejamos responsáveis diretos por eles. Do contrário, o museu de grandes novidades que faz com que o futuro repita o passado, tal qual o poeta falou, continuará sendo uma lombada nos nossos caminhos de transformação social. A cidade e tudo o que tem nela, bem como a maneira com que ela se trata e nos trata, está pautada, forjada e consolidada a partir de erros históricos validados que seguiram sem questionamentos.

Em Se a Cidade Fosse Nossa, meu livro sobre o direito à cidade, trago dois questionamentos centrais: e se a cidade fosse das mulheres? E se a cidade fosse da negritude? Essas perguntas se bifurcam em tantas outras, que suscitam questões como: e se a cidade fosse dos pobres, dos LGBTQIAPN+, dos idosos, das crianças, dos imigrantes, das pessoas com deficiência, das mães etc.

Nossa sociedade foi fundada sobre bases opressoras que deixaram os que estão, de alguma forma, localizados no espaço da subalternidade do lado de fora das considerações gerais. São grupos que ocupam as cidades e usam as edificações projetadas pelas grandes estrelas, se acomodando nas lacunas e brechas de suas invisibilidades presentes nesses espaços.

Se a cidade fosse indígena, informando que toda terra é originária e, portanto, se urbana ou rural, pertencente aos povos originários, saberíamos de maneira intuitiva que “índio com iPhone” pode sim. E, principalmente, saberíamos que “índio” é a identificação marcada pelo colonizador.

Se a cidade fosse nossa, nossos prédios contariam não apenas nossa história de colonização europeia, mas também das nossas raízes afro-- indígenas e da criatividade dos nossos arquitetos e nossas arquitetas que trabalham pela descolonização das cidades e das edificações. Se a cidade fosse nossa, seria um lugar de encontro e reconhecimento que alimentaria nosso orgulho patriótico, não de maneira excludente e supremacista como certa ala de ideologia política enviesada deseja, mas como povo que valoriza outras histórias ao redor do mundo porque aprendeu a amar a sua. Infelizmente, não há política urbana que surta efeitos a médio e longo prazo sem levar em conta que nossas questões sociais estão enraizadas de todas as formas possíveis e imagináveis.

Descolonizar ou decolonizar é preciso

“É claro que outro mundo não pode ser possível enquanto o continente e seu povo não forem totalmente descolonizados e as armadilhas do mundo neocolonizado pós-colonial não forem quebradas. Isso exigirá uma rebelião epistêmica que permita que os povos anteriormente colonizados ganhem autoconfiança, permitindo-lhes reimaginar outro mundo livre da tutela ocidental e dos ditadores africanos que desfrutam da proteção ocidental. É necessária uma nova imaginação que liberte simultaneamente o colonizador e o colonizado”, diz Sabelo Ndlovu-Gatsheni em Se a Cidade Fosse Nossa.

O pensamento do professor Sabelo Ndlovu-Gatsheni vai ao encontro da epistemologia do subalterno estabelecida por Paulo Freire e do próprio urbanismo subalterno proposto pela urbanista indiana Ananya Roy. Sobre essas bases teóricas, tenho aplicado minha reflexão a respeito de nosso cotidiano e como podemos pensar em um novo padrão de relacionamento das nossas cidades e das nossas arquiteturas, mais justo, igualitário e abrangente diante das inúmeras diferenças que nos constituem como povo brasileiro. Mas não apenas isso: reforço a importância de se compreender que, para além das questões técnicas e formais, a arquitetura e o urbanismo têm influência direta na nossa subjetividade, exercendo um papel pedagógico através de suas linguagens e seus simbolismos característicos que impactam nossa psique.

As cidades compõem a personalidade de um povo, expressam o que está em seu coração, usando a arquitetura e o tecido urbano como linguagem. Lembrando o psicanalista Jacques Lacan, para quem o inconsciente se estrutura como linguagem, e pensando nas inúmeras estruturas que se encontram, se retroalimentam e se fortalecem silenciosamente, à revelia de nossos desejos de combate às desigualdades, podemos presumir que não se pode mais ignorar que as complexidades sociais são definidoras dos nossos espaços físicos e de nossas arquiteturas.

Isso, sim, pode nos colocar diante de uma utopia que represente o futuro, com intervenções conscientes e eficientes no agora.

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