Cidade Viva: Subjetividade aumentada

O lugar dos artistas na produção da subjetividade da Inteligência Artificial

Por Luiza Futuro

Cuide do seu algoritmo

Você provavelmente se relacionou há pouco tempo com uma tecnologia que envolve Inteligência Artificial: seja na busca do Google, no anúncio do YouTube que você decidiu não ver até o fim, em qualquer item que você comprou, na música que escolheu para tocar e até mesmo no match que acabou de dar no aplicativo de relacionamentos. 

Na enxurrada de experiências da sua vida que foram atravessadas e moldadas pela IA existem situações memoráveis em que você provavelmente experimentou quase um sinal divino: parecia que a tecnologia sabia o que você estava pensando, no exato momento em que pensava. Assim como você já deve ter vivido a bad trip de se sentir perseguida por recomendações que pareciam conhecer melhor você do que você mesmo.

A Inteligência Artificial e a manutenção do status quo

Nós já sabemos que tecnologias de Inteligência Artificial, assim como as drogas, são responsáveis por transformar o comportamento humano. Enquanto isso, a aceleração da construção de uma relação simbiótica entre as tecnologias digitais, as inteligências artificiais e a sociedade (política, economia, modos de vida, relações humanas, etc) é responsável por moldar a forma que vivemos agora - como estamos nos informando, tomando decisões e sentindo.

Enquanto se concebe e se refere ao processo de impacto da penetração (e adoção) da IA como a "revolução da Inteligência Artificial", vale considerar que, se o projeto dominante de como pensamos e construímos a tecnologia continuar na mão das poucas big techs, ele estará limitado à aptidão do capitalismo em aglutinar novas possibilidades emancipatórias a partir da manutenção do status quo. 

Por isso, é imprescindível questionarmos o atual framework pelo qual vislumbramos, criamos e contestamos os limites da Inteligência Artificial e sua conexão ao projeto imperialista, colonizatório e patriarcal do Ocidente.

Como consequência, construímos e vivemos uma relação humano-máquina bastante disfuncional. Uma relação non-stop, metafísica e vigilante - a toda hora e em todo o lugar – e, no entanto, empobrecida de intimidade. A relação humano-máquina é, na verdade, muito mais máquina-humano: desamparada de sentimentos e de subjetividades. Estamos muito menos interessados em conhecer e desbravar o comportamento humano do que em moldá-lo. Como consequência, nos transformamos em uma humanidade embrenhada em Inteligência Artificial, e construímos uma IA pouco inspirada na humanidade.

Corpos-artistas habitam o limiar entre uma realidade e outra

Com coragem, nesse exato momento, tecendo outros rumos para a construção massiva das tecnologias de Inteligência Artificial e cavando espaço no coração da relação  humano-máquina, corpos-artistas habitam o limiar entre a humanidade e a IA. A partir de investigações em processos digitais e tecnológicos e da criação de imagens, os artistes Vitória Cribb e Andrey Koens exploram tensões que constituem diferentes narrativas e subjetividades que permeiam a vivência pós-humanista e, sobretudo, essa relação humano-máquina, ou, se você preferir, alma-tecnologia.

Numa espécie de subjetividade aumentada, o processo de criação dos artistas está disposto a contribuir para a construção das emoções que permeiam a nossa relação com as tecnologias. A partir de investigações híbridas entre realidade e ficção, fisicalidade e subjetividade, e o ancestral e o algoritmo, as pesquisas dos artistas calibram o encontro do que ainda não existe com a tecnologia e pavimentam o devir desta, como quem tem esperança e almeja lugares mais emancipatórios em comparação aos que temos hoje.

As criações mais recentes da artista Vitória Cribb, que partem da exposição Who Tells a Tale Adds a Tail, sediada pelo Denver Art Museum, são inspiradas em reflexões que atravessam o seu modo de trabalho imersivo com a máquina, sendo o computador (e as tecnologias digitais) o seu "lugar" de produção e de construção. A artista enxerga e corporifica o "outro lado". Cria sujeitos e subjetividades para a máquina e seus algoritmos.

Respaldada pela antropomorfização, uma condição das relações entre humanos que tende a atribuir características humanas a elementos da natureza, objetos e tecnologias, a artista criou uma série composta de mini-vídeos chamada As Vigilantes. Nela, avatares corporificam e contestam a dinâmica de vigilância e o racismo algorítmico que pautam as intermediações entre humanos e sistemas (e aparatos) tecnológicos.

Os efeitos que surgem do modo de produção capitalista e pós-humanista também inspiram as investigações do artista Andrey Koens. No seu trabalho O Mundo Desnatural,  através da captura de telas, o artista ultrapassa os limites físicos e simbólicos pré-estabelecidos entre as diferentes técnicas: pintura, imagem computacional e formas algorítmicas. A partir da amálgama entre composições, tensões estéticas e cognitivas são atualizadas. Mutuamente, intencionam fisicalidade e temporalidade como forma de criar outros espaços e estados de realidade. Esse e outros trabalhos do artista estarão em sua exposição Cry Wolf: Chora, lobo, que será online, através do site e das redes sociais do artista, a partir do dia 13 de setembro. 

A arte como desvio no rumo da Inteligência Artificial

A produção de subjetividades através das investigações artísticas deve ser compreendida como um desvio da direção que a Inteligência Artificial está tomando. Enquanto o uso massivo da IA estiver no domínio de empresas de tecnologia e sua construção for orientada unicamente pelos interesses de agendas corporativas, espaços de resistência que rejeitam a relação de dominação pré-estabelecida precisam ser incentivados. Os experimentos e as obras de Vitória Cribb e Andrey Koens devem ser entendidos como convites para se reivindicar outras aspirações para a Inteligência Artificial e, sobretudo, novos rumos para a nossa relação com a tecnologia. Com golpes estéticos, filosóficos e fantásticos, os artistas iluminam a possibilidade (e a necessidade) de habitar outras camadas e complexidades para a construção das subjetividades da Inteligência Artificial.

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10/10 com Olívia Merquior

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