10/10 com Olívia Merquior

Pesquisadora de tendências, tecnologia Web3 e idealizadora do Brazil Immersive Fashion Week, a primeira semana de moda imersiva da América Latina, Olivia Merquior é uma das principais especialistas nacionais em metaversos no âmbito da moda e da cultura. Confira, a seguir, nossa entrevista sobre o impacto das tecnologias digitais, imersivas e descentralizadas na moda.

Por Mariana Lourenço

1 - Como você começou a trabalhar com tecnologia?

Acho que o interesse por tecnologia sempre permeou a minha vida. Adoro literatura e filmes de ficção científica desde criança e, apesar de ter estudado outras áreas, o viés tech sempre esteve presente. Quando me formei em Fashion Design na Central Saint Martins, por exemplo, minha coleção final falava sobre a influência dos softwares de edição de imagem no corpo humano - como cirurgias plásticas que partiam de referências criadas em Photoshop. Os artistas que mais me inspiraram foram Stelarc e Orlan. Quando voltei para o Brasil, entrei no desfile da Animale e pedi para ficar responsável pelos tecidos tecnológicos. Me interessava mais os tecidos termo ou fotocrômicos, os sensores de temperatura que expandiam fios inteligentes, do que o design das roupas em si. Depois, entrei para o Première Vision Paris e meu maior interesse foi pelos Smart Fabrics, que se comunicavam com o ambiente ou devices de comunicação. O que sinto é que sempre vivi a tecnologia, não diria que trabalho com ela, mas que ela faz parte de quem eu sou. 

2 - O que é o Brazil Immersive Fashion Week?

Uma semana de cultura e tecnologia. Temos "fashion week" no nome, pois acreditamos na moda como um meio sensível para observarmos as mudanças estruturais da sociedade, mas, para nós, a moda vai muito além das roupas. A BRIFW tem como principal objetivo aproximar as pessoas de temas como imersão, Web3, blockchain, realidades expandidas, inteligência artificial e (claro) a nova cultura que emerge a partir de tecnologias que convencionamos chamar de metaverso. Para desmistificar todo esse "tecnologuês", a moda é um meio interessante, pois aproxima certas questões ao nosso dia a dia. Através da moda, pensamos sobre identidade, representação, produtos e histórias que queremos viver em sociedade. A forma que organizamos nossa imagem social, seja ela física ou virtual, comunica nossas expectativas sobre a vida coletiva - os símbolos que desejamos incorporar, os valores que nos norteiam, quem desejamos ser. A BRIFW é um evento para pensarmos tudo isso juntos. 

3 - Explique para nós o que é um desfile phygital?

Um desfile phygital é a apresentação de uma coleção de roupas em um espaço físico, com audiência presencial, com modelos reais, mas que usa novas tecnologias digitais para amplificar a história contada pela marca. Muita gente acha que o digital só é capaz de amplificar as experiências visuais ou auditivas, mas, na verdade, outros sentidos são trabalhados como toque e odor. Um desfile phygital usa o analógico (físico) e o digital (virtual) para criar experiências híbridas e com impacto surpreendente.

4 - O metaverso vai mudar a indústria da moda?

Já mudou. Muita gente ainda tem resistência para compreender as mudanças que estão acontecendo. Isso não é novidade. Ao longo da história, todas as grandes tecnologias foram vistas como ameaças. É o nosso instinto procurar sempre a estabilidade e desconfiar de tudo que não compreendemos. Foi assim com a fotografia, com o telefone, com o cinema, o celular… estamos dentro do esperado. No entanto, a indústria da moda já está sofrendo os impactos do metaverso. Hoje, há milhares de vagas de emprego para designers de moda digital e simplesmente não há candidatos suficientes para ocupar essas vagas. Pensamos em metaverso como um game, mas, na verdade, o ambiente de realidades e produtos integrados (físicos e virtuais) faz parte de uma nova linha de produção chamada de indústria 4.0. 

5 - Novas tecnologias, Web 3.0 e a descentralização podem tornar os cenários da moda, da arte e da cultura mais inclusivos ou isso pode trazer uma barreira ainda maior?

Quando o tema da inclusão aparece, eu me pergunto quantas pessoas hoje estão excluídas do seu direito à escola, à saúde, ao saneamento básico e quantas dessas pessoas estão com um celular na mão. A tecnologia não tem ética, ela pode ser usada para favorecer direitos ou condenar pessoas, por isso me interessa mais saber quem está operando as tecnologias. 

Por exemplo, as redes sociais da Web2 e suas tecnologias de compartilhamento de conteúdo, ao mesmo tempo que tiram o poder das grandes corporações de mídia tradicionais e abrem espaço para histórias e personagens antes invisibilizados, traz consigo também o perigoso controle dos nossos dados pelas Big Techs. Da mesma forma que tem algo positivo, carrega também muitos pontos negativos. 

Na Web3 temos a mesma situação, os NFTs, por exemplo, foram sequestrados pelo mercado neoliberal como uma forma de privatizar o mundo virtual. Isso é péssimo, mas, ao mesmo tempo, o NFT fez com que artistas fantásticos, que eram antes ignorados pelo mercado de arte tradicional, passassem a ser capazes de viver da sua arte. 

A inclusão não é um problema da tecnologia, tecnologia é ferramenta. O problema sobre quem deve estar dentro ou fora é um projeto político perverso de uma elite que usa todo e qualquer recurso para se manter no seu centro de privilégio. Por isso, defendo que precisamos nos aproximar e compreender o que é a Web3 para definitivamente seguir no caminho da liberdade para todos. Rejeitar o tema só agrava o problema.

6 - Como as tecnologias vão impactar o trabalho dos artistas, criadores e estilistas?

É uma revolução da mesma proporção de impacto gerada pela imprensa de Gutemberg, pela máquina a vapor, pela eletricidade, pelo celular. Todas foram tecnologias que mudaram a estrutura do mundo, reorganizaram a forma como nos relacionamos e os personagens sociais - a forma que atuamos no espaço coletivo. Artistas - de todas as áreas - são criadores e criaturas do seu tempo, com sensibilidade para materializar (física ou virtualmente) questões latentes, principalmente para as novas gerações. As tecnologias digitais, imersivas e descentralizadas já estão impactando o ethos do nosso tempo e, certamente, junto a essa nova ética vamos experimentando novas estéticas.  

7 - No momento, quais são os artistas brasileiros mais importantes no universo digital?

Essa é uma pergunta que não tem tanto sentido quando pensamos na Web3. Aqui, no mundo físico, há essa hierarquia do “mais importante” e esses “escolhidos” partem de uma pessoa “autorizada a selecionar”. A descentralização fala mais sobre momentos não duráveis (zonas temporárias) e protagonistas anônimos. Da mesma forma, a ideia de nação como um lugar de fronteiras que forçam a identificação de pessoas pela geografia - nacionalidade - também é complicada na Web3, pois o espaço virtual tem um caráter desterritorializado (como já diria Pierre Lévy na década de 90). Mas, para não ser a chata dos conceitos, eu admiro muito o coletivo Pupila Dilatada, o CryptoSocial, o artista Gabriel Massan, a Vitória Cribb, Kosha, o Eris Snail (com sua obsessão por inteligência artificial) e todas as marcas do line-up da BRIFW. Esses e muitos outros estão contribuindo para abrir caminhos importantes.

8 - Qual o efeito do metaverso num país como o Brasil, onde o acesso a ferramentas tecnológicas ainda é limitado a poucas pessoas?

Se você chega em uma cidade pequena, hoje, temos mais pessoas com celulares na mão do que atendimento hospitalar. Esse é um cenário absurdo, mas, infelizmente, real. O metaverso não é um lugar que você entra, ele é o esfacelamento gradual das fronteiras entre o físico e o virtual. O Brasil é um dos cinco países com mais pessoas conectadas do mundo, o uso das redes sociais pelos brasileiros é maior que em muitos dos países mais ricos do mundo. Somos um país pobre onde grande parte da população se educa, se entretém e se relaciona através do celular. Não há dúvida de que a evolução das tecnologias imersivas fará parte da vida da nossa população. Por isso a necessidade de compreendermos essas plataformas e de criarmos conteúdos relevantes com interatores de diferentes raças, gêneros, sexualidades e religiões.

9 - Quais os maiores desafios para o futuro da moda tecnológica?

Criar um ecossistema de profissionais com experiência em design, estética, e que, ao mesmo tempo, compreendam linguagem de programação, softwares 3D, inteligência artificial. Hoje, temos - com poucas exceções - ou profissionais de estilo que detestam tecnologia, ou profissionais de tecnologia que veem a moda como superficial e irrelevante. O desafio é fazer esses mundos se conectarem.

10 - Como essas novas tecnologias influenciam as interações sociais entre o criador e o consumidor final? O consumidor final já pode sentir algum impacto?

Você lembra como era o mundo antes dos celulares com aplicativos e redes sociais? As marcas enviavam cartas, lookbooks, catálogos, qualquer sorte de impresso para a casa do cliente. Depois, veio o e-mail e o spam. Com o avanço das redes sociais e do nosso monitoramento via atividade na rede, gps ou voz, as marcas passam a se comunicar via influencers e posts promovidos com o suporte de algoritmos. Hoje, os games e plataformas imersivas são as novas “redes sociais”. A geração que cresce, hoje, navegando em espaços tridimensionais dificilmente terá interesse em um feed que você rola com o dedo e no qual a máxima interação se resume a um like e a algumas mensagens de texto e voz. Quando as pessoas torcem o nariz para os avatares e dizem que não curtem, pois não são reais, eu pergunto: “E você acha que algum perfil no Insta é real?”. Nós sempre editamos nossa imagem social. Agora, estamos diante de uma tecnologia capaz de nos representar tridimensionalmente em ambientes navegáveis. Os impactos éticos desse mercado (games, avatares, produtos digitais) terá que ser acompanhado de perto, mas o fato é que, atualmente, ele já ultrapassou o mercado da música e de filmes, ou seja, o impacto já aconteceu e não começou hoje.

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