Cidade Viva: Um professor formado na faztudologia

Fábio Miranda, 43 anos, Jardim Nakamura, Zona Sul de São Paulo, músico, líder comunitário e professor à frente da Periferia Sustentável.

Fabio Miranda e O laboratório de sustentabilidade que mostra o futuro das periferias em São Paulo

Por Gaía Passarelli

Um laboratório de pesquisa de energias renováveis com uma sede totalmente autossustentável em energia solar que atende centenas de pessoas todos os meses com aulas e oficinas gratuitas, ensinando tecnologias de geração de energia limpa, acessíveis e fáceis de reproduzir — parece uma utopia, mas esse lugar existe. Chama Periferia Sustentável e fica em São Paulo, mais precisamente no Jardim Nakamura, Zona Sul da cidade.

É uma história de mais de três décadas. Os irmãos Fábio e Cláudio Miranda, hoje com 43 e 44 anos, filhos de Seu Gerson e Dona Neli, cresceram numa quebrada famosa pelos índices de homicídios — em 1996, o Jardim Ângela, distrito com mais de 70 bairros, incluindo o Jardim Nakamura, entrou na lista da ONU como uma das regiões com mais mortes violentas no mundo, título que manteve até 2013 e que só perdeu graças, principalmente, à articulação da própria comunidade.

"Não era fake news,” diz Fábio, que cresceu vendo a rua pelo buraco do portão. "Essa era a realidade desse lugar, um lugar extremamente violento. Não se podia circular de um bairro a outro, se você morava numa rua, não podia ir em outra. Muita gente queria ir embora, mas a gente não. Meu irmão me falou quando ele tinha nove anos: 'nós vamos mudar esse lugar sem sair daqui'. A gente inverso, se manteve aqui."

O caminho para mudar a comunidade onde os pais escolheram viver e os filhos decidiram ficar tem sido longo, mas é cheio de vitórias. E começou com música. Foi a partir do grupo de samba Poesia Samba Soul, fundado pelos dois irmãos e que tocava principalmente em bailes das periferias, que Fábio e Claudio encontraram o tom para essa transformação.

Música como tecnologia social

“Quando rolavam as quermesses sempre tinham os caras que vinham e convidavam pra tocar em áreas onde a gente não podia passar normalmente, só por ser de outra vila ou de outra rua. Mas eles vinham e chamavam e a gente podia ir, podia tocar e podia levar nossa galera. Engraçado, então com a música pode?” O questionamento foi fagulha necessária. “A gente entendeu que a música cria pontes. A música foi a nossa ferramenta de tecnologia social para transformar esse lugar no que é hoje."

Em 2010, Cláudio e Fábio decidem oficializar esse potencial e criar o Instituto Favela da Paz, organização privada sem ligações governamentais, criada para continuar o trabalho do Poesia Samba Soul. Fundado em 2010, o IFP é uma rede de atividades transformadoras com foco na incubação de projetos de arte, cultura, sustentabilidade, esporte, saúde e educação. Hoje, dentro da rede atuam articuladores culturais que têm transformado a região em um modelo urbano a ser imitado. É um dos muitos projetos revolucionários de organização social da Zona Sul paulistana, como Cooperifa, Mulheres de Paraisópolis e a agência Cultural Solano Trindade, que mostram a potência da organização comunitária, da cultura e da educação.

“A Favela da Paz abriga várias iniciativas, tudo no nosso quintal. Tem o projeto Vegearte, de alimentação saudável e cozinha vegetariana, para nutrir o nosso corpo e afastar a alimentação dessa coisa de que comida vem em lata. Tem o Samba Na Dois, que dá aulas de música para crianças. Dentro da casa sempre tem várias coisas rolando, como um grupo de terapia comunitária para mulheres. Tem aulas de audiovisual. Tem o estúdio, construído durante a pandemia com mais de 70% de material sustentável, onde bandas e artistas gravam lives todos os dias da semana,” lista Fábio. 

Sustentabilidade real

No coração disso tudo está o Laboratório Periferia Sustentável, um tipo de QG, meio casa e meio escola, que é o lar desse verdadeiro Professor Pardal da Quebrada e de seus muitos projetos, como o Laboratório de Energias Renováveis, com energia solar e captação de água de chuva. 

É um lugar que está sempre aberto para as pessoas da comunidade, oferecendo de aulas de percussão a oficinas de automação, além de abrigar um biodigestor, projeto do próprio Fábio, que transforma sobras de alimentos em biogás e biofertilizantes, ambos essenciais para os fogões e para a horta orgânica vertical, que são as bases da cozinha do Instituto.

A vocação sustentável e tecnológica do Favela Sou da Paz surgiu entre 2009 e 2010, quando Fábio, que então trabalhava em uma floricultura na Zona Sul e, pela natureza do trabalho, já era ligado em questões de sustentabilidade, teve a oportunidade de viajar para a ecovila de Tamera, em Portugal, seguindo os passos do irmão, que já tinha estado no local como parte de um programa de capacitação em empreendedorismo. “Meu irmão ficou lá por três meses e contava várias coisas que a gente aqui na época achava muito doidas: captação de energia solar, biogás, permacultura." A Poesia Samba Soul foi convidada para se apresentar e conhecer a ecovila, e Fábio voltou se perguntando: “por que é que não tem energia solar na minha quebrada?”

Essa foi a primeira de muitas viagens para países como Portugal, Israel, Palestina, Espanha e Escócia que Fábio fez entre 2010 e 2015 para aprender sobre tecnologias sustentáveis. Ao abrir os olhos para seu próprio potencial como empreendedor e líder comunitário, ele passou a trazer aprendizado de volta à sua comunidade.

Presente-futuro

O maior passo do Instituto é a construção da nova sede, um projeto criado em parceria com o estúdio de arquitetura O’Reilly, em andamento desde 2015 e atualmente em fase de captação de recursos.

“Em 2015, nós compramos o único terreno livre da comunidade sem saber o que fazer lá. Nossa vontade era ampliar nosso espaço, mas não tínhamos uma ideia clara. Com o passar dos anos e com a formação da nossa rede, em 2018 e 2019 a Patricia O'Reilly, arquiteta, nos fez uma proposta de criar uma sede com base no nosso cenário.”

O projeto, premiado em 2021 na Bienal de Arquitetura de Veneza, também fez parte da seleção de oito projetos escolhidos na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2021, ao lado de construções na Indonésia e na Itália.

"A hora que ela chegou na quebrada e viu as casas, ela ficou besta. Eu falei 'bem-vinda à arquitetura periférica'. O projeto que ela criou é fantástico, será o primeiro projeto do tipo na América Latina. Todos os projetos do Favela da Paz estarão nesta sede: captação de energia solar, captação de água de chuva, parede verde, tudo que você imaginar. Será totalmente autossustentável. Além disso, há uma perspectiva de impacto de um quilômetro de extensão ao redor do terreno. Não é só a construção da sede, é a revitalização de todo um entorno com calçada, plantio de árvores, sistema de irrigação e acessibilidade”, diz Fábio. 

A sede do Instituto Favela da Paz é a consolidação do desejo de Fábio e Cláudio Miranda de mudar a Vila Nakamura sem sair dela. “Eu nasci, cresci, e sobrevivi nesse lugar. A realidade que a gente trouxe ao conectar pessoas mudou o funcionamento da região. E não é só o nosso trabalho, são vários projetos na zona sul de São Paulo. Tudo isso traz perspectivas de mudança, cria oportunidades,” analisa Fábio. "Hoje, estou em muitos lugares, dou cursos, falo com pessoas e vejo o potencial que as conexões têm de fazer essas mudanças. É um trabalho de formiguinha, mas com muito potencial. É preciso mostrar essas coisas que estão acontecendo."

Como visitar

É possível fazer visitas guiadas e conhecer as tecnologias em uso no Periferia Sustentável agendando via Facebook e Instagram:

https://www.instagram.com/institutofaveladapaz/

https://www.facebook.com/institutofaveladapaz

Também dá para conhecer o trabalho do Instituto Favela da Paz no YouTube, através do extenso arquivo de lives que vão de apresentações de artistas e bandas a tutoriais de aproveitamento de alimentos:

https://www.youtube.com/institutofaveladapaz

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