10/10 com Carla Tennenbaum

Por Mariana Lourenço

Carla Tennenbaum é designer, consultora de inovação e cocriadora da Ideia Circular. Fundada em 2015, a Ideia Circular é uma iniciativa criada para inspirar, apoiar e divulgar projetos circulares brasileiros através de conteúdos, livros e workshops e discutir os conceitos de economia e design circular fundamentados na metodologia Cradle to Cradle. Há 20 anos, Carla trabalha com o que muitos chamam de lixo, ajudando pessoas e empresas a criarem produtos e sistemas produtivos inovadores, efetivos e surpreendentes a partir de materiais subvalorizados. Em entrevista para o Coletivo, Carla conta mais sobre o seu trabalho e explica conceitos importantes sobre economia circular e a metodologia Cradle to Cradle. Confira:

1 - O que é e qual a importância da Economia Circular?

A economia circular é uma nova visão de futuro e de organização dos nossos sistemas produtivos com a intenção de manter o valor em circulação e gerar efeitos positivos para as pessoas e o planeta. O desenho circular e intencional de novos produtos e processos possibilita o aproveitamento inteligente dos recursos em um sistema no qual resíduos se tornam nutrientes e os materiais circulam no máximo de seu valor nos ciclos técnico ou biológico. Assim, a economia circular objetiva dissociar a prosperidade econômica e o bem-estar humano do consumo crescente de novos recursos, oferecendo um novo modelo de desenvolvimento regenerativo, inspirado nos processos da natureza.

2 - Como surgiu a Ideia Circular?

A Ideia Circular surgiu a partir de uma parceria minha com a Léa Gejer, quando descobrimos que nós duas estávamos pesquisando a metodologia Cradle to Cradle e a economia circular, numa época em que ninguém no Brasil estava falando sobre isso. Começamos a trabalhar juntas e criamos a Ideia Circular em 2015 para promover essa conversa por aqui - para divulgar, mas também investigar como “tropicalizar” essas ideias e como elas poderiam ser aplicadas para inspirar projetos circulares no Brasil. 

Nós oferecemos vários conteúdos abertos e gratuitos no site (www.ideiacircular.com) e no nosso blog (www.ideiacircular.com/blog/), que é o maior acervo original sobre economia circular em português, com mais de 130 artigos, entrevistas e estudos de caso inspiradores. 

Como serviços, oferecemos palestras, workshops e treinamentos in company, além de um curso online pioneiro chamado Economia Circular na Prática: Entenda, Desenhe, Transforme, que, desde 2018, já formou mais de 500 profissionais de várias áreas e lugares do Brasil. Tem sido muito inspirador trabalhar de perto com pessoas e projetos tão incríveis e contribuir para essa transformação no Brasil!

3 - Por que o lixo é um erro de design?

Achamos importante trazer essa perspectiva porque hoje em dia existem muitas empresas e iniciativas falando da economia circular como sinônimo para reciclagem, ou para o gerenciamento de resíduos - e nós entendemos que é muito mais do que isso. 

Ainda que seja válido buscar formas de reduzir o desperdício ou inventar novos usos para os materiais descartados, se nós só trabalhamos nessa ponta do descarte, gerenciando os resíduos, sem mexer na concepção dos produtos e sistemas (que é o que a gente chama de design), esses materiais vão continuar sendo extraídos, o resíduo vai continuar chegando e a gente vai ter que fazer um malabarismo cada vez maior, sem resolver o problema na raiz.

Então, para transformar nosso sistema linear em uma economia circular, precisamos repensar todo o sistema e desenhar produtos e processos mais inteligentes, que mantenham o valor dos nossos materiais em circulação. 

Dizer que o lixo é um erro de design significa que a gente precisa olhar não só a ponta do descarte, mas principalmente a ponta do design, do projeto, da concepção dos produtos e dos sistemas, para pensar desde o começo como os materiais vão circular com qualidade. 

E não é só o design de produtos, mas também o design de processos e modelos de negócios. É sobre ser intencional, sobre onde queremos chegar – como indivíduos, como empresas e como espécie, para onde queremos ir? Tudo isso, para mim, tem a ver com o design, com a intenção. Mesmo se considerarmos só a materialidade, quer dizer, o design de produtos, componentes ou materiais, a ideia é pensar o que acontece com todos esses recursos valiosos depois do primeiro ciclo de uso.

4 - Falando em Economia Circular e um futuro mais sustentável, você acredita que o Brasil tem avançado nessa área? O que mais poderia ser feito?

No Brasil já existem muitas empresas e iniciativas trabalhando dessa forma regenerativa, quer usem o termo economia circular ou não. Existem empresas pequenas e grandes que estão projetando novos materiais para os ciclos biológicos, ou até mesmo que usam resíduos da indústria para produzir materiais positivos para o ciclo técnico. Temos também startups que estão criando ferramentas inovadoras para rastrear materiais por toda a cadeia de valor. Então existem muitos projetos inspiradores e inovadores. Mas existe uma inércia, e uma certa resistência, um medo de liderar essa mudança. Muitas vezes, quando tentamos “vender” a ideia de economia circular nas empresas, a reação é “Tem mais alguém fazendo isso?”, “Vamos ser os primeiros?”, “O que acontece se não funcionar?”. Às vezes, ainda temos esse modo de pensar colonizado, em que ninguém quer ser o primeiro, preferem imitar do que inovar. Eu falo principalmente de grandes empresas, que estão muito preocupadas com os rendimentos imediatos e são mais conservadoras. 

Por outro lado, existem várias empresas menores, startups e empreendedores que estão muito interessados ​​em inovar. E estão fazendo isso contra todas as probabilidades, porque não temos ainda políticas públicas ou mecanismos financeiros que realmente apoiem a inovação.

E acho que ainda temos muito a avançar ​​em um aspecto crucial, que é a saúde dos materiais. Porque a gente vem da perspectiva Cradle to Cradle, isso é muito importante na nossa abordagem sobre Economia Circular: não é só projetar os materiais para que sejam reciclados, mas também para serem saudáveis e seguros para as pessoas e o planeta.

Nesse sentido, estamos muito atrasados. Por exemplo, temos substâncias permitidas no Brasil que foram proibidas na Europa há muitos anos, especialmente na agricultura, como pesticidas - e existem projetos de leis para tornar isso ainda pior. 

5 - Qual a diferença entre sustentável e circular?

O termo “sustentável” é um pouco vago, e vem sendo usado sem critérios claros, o que acaba gerando o que a gente chama de greenwashing (propaganda enganosa, ou ‘maquiagem verde’), e muita confusão. Esse termo também traz algumas questões: o que a gente quer sustentar? E será que a gente quer só sustentar, ou podemos pensar em prosperar, restaurar e regenerar? 

Além disso, a maioria das estratégias de sustentabilidade hoje em dia têm um foco quantitativo, de minimização de danos ou compensação de impactos negativos, que não resolvem o problema porque não vão na raiz dele (assim como o gerenciamento de resíduos não vai na raiz do desperdício). Ser menos ruim não é ser bom!

Já a ideia de circularidade traz uma nova abordagem. Ainda que ela também possa ter – e já vem tendo – algumas apropriações superficiais e insuficientes, dentro da abordagem que seguimos, que é fundamentada na metodologia Cradle to Cradle, ela oferece uma proposta inovadora, com uma visão positiva de futuro que sinaliza uma nova forma de interagir com o planeta e de regenerar os nossos sistemas. 

A gente, inclusive, tem um curso novo que se chama Sustentável ou Circular? Como fazer diferente, com critérios e com alegria!, que explora justamente essa diferença.

6 - Conte para nós um pouco mais sobre seu projeto de arte Desespirais.

Esse projeto é fruto da minha pesquisa com resíduos de EVA, que é um material muito colorido e versátil, mas que não é reciclável, então as sobras industriais – que são muitas e volumosas – vão todas parar em aterros e lixões.

Passei mais de 15 anos trabalhando com esse material e desenvolvendo tecnologias artesanais para valorizar os resíduos e criar, entre outros produtos, essas espirais, que são mandalas feitas com pequenos módulos que funcionam como partículas de cor.

No começo eu usava cola para moldar as peças, mas não estava feliz com isso, então passei alguns anos pesquisando até desenvolver um sistema que funciona só com encaixes, o que permite que cada peça possa ser feita, desfeita e refeita indefinidamente. Por isso “desespirais”! 

Essa experiência rendeu alguns prêmios e me fez entender, de uma forma muito concreta, o poder do design para definir o que acontece com um produto depois do uso. É uma forma alegre, impactante e inspiradora de chamar a atenção das pessoas para esse assunto e demonstrar o valor de materiais que hoje são descartados e desperdiçados. 

7 - Quais os desafios de criar uma arte sustentável sem limitar o processo criativo?

Precisa de alguma perseverança, porque os materiais e processos que temos disponíveis, em sua maioria, ainda são “insustentáveis”, ou geram uma contaminação e prejudicam a circulação de valor. Para mim, esse desafio não limita o processo criativo - pelo contrário, ele é um motor de criatividade e inovação. Além do meu próprio trabalho autoral, essa busca de processos mais circulares é o mote das oficinas e processos criativos que eu conduzo com resultados muito surpreendentes e inspiradores. Como, por exemplo, um grupo de jovens da periferia de São Paulo que queria aprender a fazer pufes com garrafas PET. Quando eu os desafiei a desenvolver uma técnica melhor do que aquela que os tutoriais da internet ensinam, que contamina o PET com um monte de fitas adesivas, eles inventaram rapidinho uma alternativa incrível e muito criativa - mesmo sem nenhuma formação ou experiência anterior em design.

8 - Você diria que a reutilização de materiais é um meio de tornar a criação artística mais acessível?

Não necessariamente. O que “encarece” a arte geralmente não são os materiais, mas o trabalho envolvido, e o uso de materiais reutilizados não necessariamente implica menos trabalho. Pelo contrário, pode ser – e geralmente é – mais trabalhoso. Mas eu acho que a reutilização de materiais é uma forma incrível de potencializar essa função da arte de gerar valor – seja valor financeiro, estético ou afetivo. É também uma forma de aliar a economia circular à economia criativa, em um círculo virtuoso que transforma o nosso olhar para os recursos à nossa volta. 

9 - Explique para nós o conceito de Cradle to Cradle

O pensamento Cradle to Cradle, que em português significa “do Berço ao Berço” (também abreviado como C2C, do inglês “C to C”), é uma metodologia pioneira nesse conceito de circularidade, reconhecida como uma das principais bases teóricas da economia circular. Essa metodologia é a grande referência e inspiração minha e da Léa, tanto no nosso trabalho individual, como na Ideia Circular.

Esse conceito foi desenvolvido pelo arquiteto norte americano William McDonough e o engenheiro químico alemão Michael Braungart, e começou a ser divulgado a partir de um livro-manifesto publicado por eles em 2002, que impactou muito o universo da sustentabilidade com ideias bem revolucionárias de como a gente pode transformar a nossa indústria de uma forma positiva.

O termo “do berço ao berço” é uma provocação, porque tem uma expressão que é usada na análise de ciclo de vida que fala “do berço ao túmulo”, quando se avalia o impacto negativo de um produto no caminho linear que vai da extração, que seria o berço, até o descarte, que seria o túmulo. Então, quando eles falam “do berço ao berço”, estão questionando por que um produto precisa ter um túmulo.

A ideia é que um produto ou material não precisa ser descartado se nós o desenharmos desde o início já pensando no que pode acontecer depois - no próximo ciclo, ou no próximo “berço” de cada material. Com esse pensamento, conseguimos acabar com a ideia de lixo, já que os materiais são sempre pensados como nutrientes para novos ciclos.

10 - Como podemos criar um futuro mais circular? 

Repensando o nosso jeito de fazer as coisas e organizar os nossos sistemas de uma forma inteligente e regenerativa! Existe uma oportunidade enorme porque tudo precisa ser redesenhado. Se pensarmos que tudo foi projetado para uma economia linear e estamos tentando fazer essa mudança, tudo precisa ser redesenhado levando em conta os princípios da economia circular. Essa é a inovação necessária, que é intencional, não só essa ideia de inovação como tendência, para estimular o consumo. Acredito que esta é a maior oportunidade que já tivemos de redesenhar intencionalmente toda a nossa indústria. 

Em que velocidade isso vai acontecer nós não sabemos, e vamos ter - já estamos tendo - que lidar com as disrupções e emergências ligadas às mudanças climáticas. 

Mas acreditamos que essa é uma transformação que já começou e é sem volta. O futuro é circular - e quanto antes começarmos a trabalhar por ele, melhor.

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