Cidade Viva: “Agora eu sou Perua"

Por Gaía Passarelli

Flávia Durante mora em um dos predinhos antigos mais bonitos da Barra Funda, ali onde o agora bairro cool da cidade se descola da região central. É o apartamento perfeito de gente que trabalha com comunicação: tem piso de taco, parede em arco, janelas grandes e paredes decoradas com ilustrações e recortes de drag queens e divas latinas. Flávia demora no banheiro onde termina de se arrumar, enquanto Hector Lima, roteirista e redator, seu marido há bons vinte anos, me serve água gelada e faz sala, puxando papo. Não que a Flávia precise se arrumar pra me receber - somos colegas da mesma geração da internet e da vida real, duas nascidas em 1977 com trajetórias parecidas dentro do jornalismo cultural paulistano, pessoas que fizeram de tudo um pouco, sempre com um pé no online, desbravando trends digitais e redes sociais e apontando o que ainda vai ser legal. Ela não precisa, mas se arruma mesmo assim. E quando aparece, vestindo um macacão cor-de-rosa-choque combinando com o cabelo pintado, a sala se ilumina. Ela senta no sofá, eu elogio o look, e ela entrega: “É que agora eu sou perua”. 

Foto por Robson Leandro

Quem conhece a Flávia, Flá para os íntimos, de pistinhas de indie rock e salas de imprensa de festivais de música, enxerga a mesma pessoa ligada e eloquente de sempre, só que agora com outro élan. Tem algo a mais, um brilho no olhar que vejo pouca gente carregando nesse perrengue que é viver em 2022. É o efeito Pop Plus.

A dedicação a esse projeto, que nasceu como um bazar de roupas plus size entre amigas e se tornou o único festival de moda e cultura plus size no mundo, justifica a transformação. O Pop Plus está fazendo dez anos e essa é a hora da Flávia, santista, 45 anos, formada em jornalismo, que vem desde o começo dos anos 2000 trabalhando com assessoria, redação, discotecagem e o que mais pintasse na frente, colher o que plantou de bom.

A edição mais recente do Pop Plus aconteceu no enorme Club Homs, em plena Avenida Paulista, e recebeu quase dez mil pessoas ao longo do fim de semana. A edição é a segunda da retomada pós-pandemia e ainda não alcançou a quantidade de público que o evento estava recebendo antes de março de 2020 – algumas edições desses dez anos de Pop Plus passaram de quinze mil pessoas. Mais três bazares, no mesmo local, estão programados para esse ano, o próximo nos dias 11 e 12 de junho.

Uma coisa levou a outra

Não era isso que Flávia tinha em mente quando veio morar em São Paulo com o então namorado, o também santista Hector Lima, 46, em 2004. Como muita gente que se formou no começo dos anos 2000, ela teve que encarar uma transição atrás da outra, querendo ser repórter da área cultural em um mundo em que jornais e revistas davam espaço a blogs e canais de YouTube. Aproveitando a conexão com bandas e artistas do underground paulistano, criou uma das primeiras e mais essenciais iniciativas independentes do jornalismo cultural desse período, a newsletter (e depois blog) Assessorindie, que listava apresentações no circuito alternativo da cidade e ajudou muita banda a alcançar cadernos de cultura de grandes veículos. Ali, Flávia começou também o que se tornaria seu grande turno de carreira: uma belíssima lista de contatos, tanto de artistas quanto de produtores, promoters, espaços de eventos e jornalistas. Essa lista a levou ao posto de editora de lifestyle do Vírgula, finado portal de entretenimento do grupo Jovem Pan, em 2009. O que, por sua vez, acabou colocando Flávia em contato com blogueiras de moda plus size, sua inspiração para começar a vender biquínis e maiôs descolados para pessoas gordas via redes sociais, um negócio que mantinha junto com o emprego e que foi crescendo de forma orgânica. 

“Eu ainda não tinha dinheiro para fazer em loja física e nem virtual, e decidi fazer um bazar. O primeiro aconteceu no Espaço Zebra, no Bixiga, o flyer tinha a cara da Beth Ditto (vocalista do Gossip e musa de estilo plus size). Eu vendia meus biquínis, uma amiga vendia leggings coloridas e estampadas, outra vendia camisetas, outra tinha um brechó. Tipo meia dúzia de marcas. E como eu já tinha muito acesso e contatos com blogueiras e jornalistas, teve uma repercussão bacana, todo mundo ficou interessado, querendo saber quando teria de novo.”

E teve de novo. Ao longo de dois anos, o bazar foi crescendo e mudando de lugar, alcançando cada vez mais marcas e consumidoras. E o que começou como uma forma de conectar pessoas que gostam de moda, mas não sabiam onde achar looks legais, ganhou outra proporção em 2014:

“Era um momento em que tinha muita coisa acontecendo em São Paulo, muitas feiras de pequenos produtores, moda, artesanato, e nós fomos pela primeira vez para um espaço grande, em Pinheiros. E lotou. Vinha gente emocionada, chorando, dizendo ‘nossa, obrigada, estou encontrando coisas que eu nunca encontrei, nunca usei na vida’. Esse impacto me levou a tentar entender por que isso acontecia, por que as pessoas eram tão excluídas da sociedade, do mundo? Nessas pesquisas, falando sobre ativismo gordo e fazendo o bazar, comecei a receber convites de palestras e debates. Sempre fui ativista de um jeito informal, não fui a pessoa que se preparou, que leu para ser feminista. Então eu fui muito de acordo com as minhas próprias vivências, tentando entender, me aprofundar, para não passar mensagem errada, fui me preparando para ser mesmo uma representante desse segmento.”

É a maior

Apesar de usar o slogan “a maior feira plus size da América Latina”, o formato do Pop Plus é único no mundo. Existem eventos de moda com a mesma temática pelo Brasil e festivais de cultura plus size em outras cidades do mundo. Mas não existe outro com a mesma diversidade, tamanho e longevidade do evento paulistano. 

“A gente tem as marcas de moda, todas autorais, com produção própria. Aí também tem lingerie, praia, calçados, acessórios. E a parte de debates, que sempre fala sobre questões pertinentes da vida de pessoas gordas e do mercado de moda plus size”. Na última edição do Pop Plus, debates aconteciam enquanto celebs do mundo plus size tiravam foto no backdrop, com os estandes de produtos integrados à uma programação de apresentações de dança, pocket shows e apresentação de DJs.

O principal momento de virada de chave pra transformar o Pop Plus de bazar de roupas no festival de moda, cultura e arte, com dois dias de duração, que é hoje, aconteceu em 2016. Flávia conta que só começou a levar realmente a sério, colocando o evento como prioridade na vida, depois de perder um emprego como assessora de imprensa do Grupo Vegas, em 2016. Foi um sinal.

“Ali foi o empurrão para entrar de cabeça no Pop Plus, que até então era algo que eu via como algo extra. Demorei para acreditar nisso como o meu trabalho, o meu projeto. Eu estava com a faca e o queijo na mão, mas precisava de um empurrão. Talvez se não fosse isso eu estivesse até agora com outro emprego, fazendo quinhentas coisas ao mesmo tempo, como sempre fiz.” 

Tempos pandêmicos

A história do evento durante a pandemia é exemplo do que pequenos empreendedores e gente da área cultural teve que encarar a partir de março de 2020. 

“Nós estávamos com o evento montado para acontecer em março de 2020. Já estava correndo a conversa da pandemia, a gente já tinha pensado em cancelar, mas as marcas pediam para, por favor, mantermos, aquela coisa, é de onde muita gente tira renda do começo do ano. Aí chegou o decreto da prefeitura cancelando todos os eventos municipais e estaduais. Foi um horror. Era o certo, mas na época tudo estava muito desencontrado. Quando você é produtor de evento você está acostumado com chuva, com expositor que fica doente e falta, mas você nunca está esperando uma pandemia. Nós ficamos totalmente perdidos.”

Para tentar amenizar o prejuízo, tanto próprio quanto das marcas, Flávia e equipe correram atrás de transformar o Pop Plus em uma série de pequenos bazares, com público até quinhentas pessoas, algo permitido pelo primeiro decreto em 2020. 

“Foi uma loucura. Uma pressão horrível em cima de mim, as marcas pedindo o dinheiro de volta, mas nós já tínhamos gastado tudo em ambulância e estrutura, todo mundo sem saber o que ia acontecer. Eu fiquei totalmente no breu, entrei em depressão mesmo. E ficamos parados dois anos.” 

Nesse tempo, Flávia conseguiu fazer três bazares virtuais, transmitindo da sala de casa mesmo, como se fosse um festival online. “Foram quatro marcas a cada edição, uma coisa bem de volta ao começo, eu ficava lá interagindo, teve apresentação de dança, aula de yoga, o que dava para fazer”. E foi uma edição Pop Plus online grande, em abril de 2021, viabilizada através da união com outras produtoras e com verbas de leis de incentivo, que fez a ficha do potencial da próxima etapa do projeto.

Essa retomada com tamanho sucesso é uma alegria e um alívio. E encontra Flávia nesse momento brilhante, cheia de planos. “O povo abraçou mesmo, teve uma repercussão muito bacana. Foi importante essa experiência do online porque ficou claro o potencial do Pop Plus de chegar a outros lugares do Brasil como uma plataforma de conteúdo mesmo, que funciona o tempo todo, não como uma coisa fixa e pontual que acontece quatro vezes por ano.” 

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